Cancro da pele e discriminação: um duplo fardo para os albinos
Em África, tal como em Moçambique, os albinos sofrem na pele os efeitos da discriminação. Embora, aparentemente, o país aceite e respeite quem nasce com esta característica genética, ainda persistem atitudes que atiram os albinos para uma situação de cidadãos de segunda. Na Tanzania e no Burundi, por exemplo, os albinos são mortos para a venda de seus órgãos em poções. Os feiticeiros convencem os seus clientes que podem ficar ricos se ingerirem essas poções. Na sexta-feira da semana passada, numa das salas do Ministério da Saúde (MISAU), o drama por que passam os albinos em Moçambique ficou mais exposto: são hostilizados pela família e na comunidade onde vivem.
Alguns albinos que tomaram parte da referida reunião falaram sobre preconceitos, como são vistos na sociedade, os cuidados que devem ter com a alimentação e com a pele e revelaram o seu dia-a-dia.O sentimento de discriminação de que se ressente aquele grupo social está também associado às dificuldades que os albinos têm encarado no que diz respeito às oportunidades de emprego e de formação académica. Por outro lado, os albinos são mais vulneráveis a doenças de pele, mais concretamente ao cancro da pele, o que, nas suas palavras, exige uma maior atenção das autoridades governamentais. O encontro com o ministro Ivo Garrido teve como finalidade a manifestação da pretensão de se criar uma associação de albinos para a defesa dos seus interesses.Durante cerca de duas horas, albinos e outras pessoas próximas a eles tiveram a oportunidade de expor os seus problemas. A tónica das intervenções foi sendo sempre a mesma: tocava-se na questão da discriminação, havendo, por um lado, mulheres que diziam ter sido abandonadas pelos maridos supostamente por terem gerado filhos albinos e, por outro lado, relatos de dificuldades no que concerne ao acesso a cremes protectores de pele bem como à falta de dinheiro para a aquisição de óculos, dado que um número considerado de albinos tem problemas de vista.
“O meu marido abandonou-me por ter filhos albinos”
Depois que o titular da pasta da saúde, Ivo Garrido, deu algumas considerações sobre as razões da reunião com as pessoas albinas, Adelaide Valente, mãe de cinco filhos, todos albinos, tomou a palavra e disse quase tudo o que lhe ia na alma sobre o seu sofrimento e dos filhos. Começou por dizer que “não tenho como criar os meus filhos, pois o meu marido me abandonou”. Disse que vive numa casa de arrendamento num bairro que não ajuda para a realização de pequenos negócios para a sua sobrevivência. Apontou que apesar de alguns dos seus filhos já estarem crescidos, não conseguem emprego por causa da discriminação e da falta de fundos para custear os estudos. Deixaram de frequentar a escola e estão desempregados. Indignada com a vida que leva, Adelaide desabafou nos seguintes termos: “Eu não vejo o mal que fiz porque foi Deus quem me deu esses filhos”. A maior preocupação de Adelaide é ver os filhos empregados para lhe ajudarem a pagar a renda da casa porque, tal como contou, já foi avisada que será despejada dentro em breve caso não liquide a dívida.
“A minha sogra não aceita pegar nos netos albinos"
Dulce Andrade, de 42 anos, é outra cidadã que sofreu no seu lar por ter tido filhos albinos. Esse facto culminou em divórcio. Dulce contou que na primeira gravidez gerou gémeos, sendo um albino e outro negro. “A minha sogra não aceitava pegar no neto por ser albino até que um dia ele acabou por morrer…”, disse Dulce. De tanta tristeza, Dulce não conseguiu terminar o seu depoimento e desatou aos choros. Após alguma acalmia, prosseguiu com a sua triste história. Contou que na segunda e terceira gravidez voltou a ter albinos, o que levou a família do marido a lhe expulsar de casa. “Fiquei quase maluca “, precisou. Disse que o que lhe fez prosseguir com a vontade de viver foi a força que a sua família lhe deu.O que inquieta ainda mais Dulce é o facto de um dos seus filhos albinos estar doente e sem recursos financeiros para lhe garantir um tratamento. “Quando telefono para o meu marido, ele me ignora”, concluiu
“Por ser albina um homem já me deixou com a criança morta dentro de casa”
Helena Chavane, albina e mãe de um filho, contou aos presentes que já teve um marido que lhe abandonou com um bebé morto na sua residência. “Esse homem não é o primeiro a abandonar-me. Os homens só me querem para engravidar e depois fugirem”, referiu. Helena diz estar preocupada em arranjar um outro emprego porque no local onde trabalha actualmente recebe apenas 400 meticais, valor que nem um saco de 25 quilogramas de arroz compra. Apontou que a casa onde vive actualmente “verte água”. Diz que não tem meios para melhorá-la, porque mesmo o filho que tem não a ajuda em nada.
“Meu irmão morreu devido ao cancro da pele”
“Tenho um irmão, também albino, que morreu ano passado devido ao cancro da pele”, referiu Verónica Massango, jovem de 33 anos e órfã de pai. Disse que ela e o falecido irmão recebiam tratamento no Hospital Central de Maputo, mas ele não resistiu à doença. Apontou que o grande problema é a dificuldade que enfrenta em conseguir dinheiro para a compra de medicamentos e cremes de pele. “Tenho três receitas que contabilizam 600 meticais por isso ainda não comprei o medicamento porque não tenho meios”, disse Verónica.
“Não estudei por causa do problema de vista”
Cecília Massinga, de 33 anos, quando tomou a palavra começou por dizer que “sou órfã de pai. Abandonei cedo a escola, por causa de problemas de vista. Uma das características dos albinos é que, na sua maioria, não vêem bem porque as retinas não funcionam adequadamente. Embora poucos sejam cegos, muitos não vêem o suficiente para conduzir um carro.Mesmo assim, o professor da Cecília Massinga, deixava-a sentar nas carteiras de trás. “Eu não conseguia ver o que estava escrito no quadro o que me fez abandonar a escola”, lamentou Massinga. Disse ainda que “os óculos são caros e não tenho como adquiri-los”. Cecília precisou que tem procurado trabalho, mesmo para ser empregada doméstica, mas não consegue. “Não sei se isto deve-se ao facto de eu ser albina”.
“Os medicamentos que nos receitam só existem nas farmácias privadas”
Outra preocupação levantada por Custódio Cumbane, albino e professor na Zambézia, está relacionada com o facto de a maior parte dos medicamentos receitados pelos médicos nos hospitais públicos, sobretudo cremes para pele, não estarem disponíveis nas farmácias que existem dentro dos hospitais públicos ou nas farmácias estatais. Esta situação coloca em causa a saúde dos albinos. Contou que para conseguir se formar profissionalmente teve que pedir ao médico que lhe assistia para substituir os medicamentos “que só é possível conseguir nas farmácias privadas em outros que poderia comprar a preço acessível na farmácia do hospital público”. Outra forma adoptada por Cumbane, durante a sua formação, era de pedir ajuda aos colegas para lhe facilitarem a leitura dos apontamentos no quadro. “Para registar algo no caderno pedia ao meu colega do lado para ler o que estava no quadro”, recordou.
Chamam as minhas filhas de “mintete”
Felismina Augusto contou que as pessoas apelidam as duas filhas albinas de “mintete” (gafanhotos). “Olham para mim como se eu não pensasse ou que quisesse ter filhas albinas”. Por outro lado, Felismina apontou que quando teve a primeira filha albina o marido não gostou de ver. Na segunda gravidez, voltou a ter uma outra albina e o marido disse: “Chiii, uma albina outra vez, como é que hei-de mostrar as crianças aos meus amigos?”. Felismina disse ainda que uma das filhas tem problemas de visão e audição, o que dificulta o desempenho escolar. Porém, graças a uma organização não governamental, as filhas têm tido assistência médica gratuita. Ela referiu que gostaria de saber que tipo de pomada ou creme deve aplicar nas filhas “porque quando chega o Verão elas ficam cheias de feridas no corpo”. Esta situação leva as meninas a ficar dentro de casa durante o dia devido às moscas que são atraídas pelas feridas.
“Ja tive um professor que chegou a dizer que devia deixar de estudar porque lhe incomodava”
Falando aos presentes no encontro, Raul Alfredo disse que o que lhe marcou na vida por ser albino é o facto de um dia o seu professor na Escola Secundária da Machava-Sede lhe ter dito para deixar de ir à escola “porque eu lhe incomodava por sempre lhe pedir para assistir às aulas próximo ao quadro para poder ver e ler os apontamentos”. Apesar da ofensa do professor, Raul diz que não chegou a desanimar, tendo continuado a estudar até formar-se como professor. Raul diz ter dúvidas se os albinos podem ou não comer mariscos.
Como ter pele bonita? A questão da maioria “
O segredo é proteger-se contra o sol” - responde Ana Lopes também albinaRespondendo a esta questão, Ana Lopes, por sinal a que incentivou o ministro da Saúde a criar condições para um encontro com os albinos, disse que “o segredo é proteger-se contra o sol”. Lopes, que também é professora da Escola Secundária Armando Guebuza, disse que para ela manter a pele sem feridas recorre ao uso de cremes protectores do sol e chapéu capaz de lhe tapar até os ombros. Vestir de modo a cobrir a maior parte do corpo para proteger-se contra o sol é outra medida.
O que diz o MISAU
Por seu turno, o ministro da Saúde, Paulo Ivo Garrido, disse ter ouvido e registado as preocupações apresentadas pelo grupo e prometeu ajudar a resolver ou a minimizar os problemas apresentados. “Para tal vocês devem estar organizados em associação”, disse Garrido. Quantos são e onde se concentram são questões desconhecidas, mas que, segundo Garrido, a criação de uma associação dedicada ao albinismo ajudará a conhecer.
O que é albinismo
Explicando a jornalistas o que seria albinismo, o titular da pasta da Saúde, que também é médico, disse que o albinismo se deve à ausência de um tipo de células no organismo chamadas melanócitos, responsáveis pela produção do pigmento - a melanina. “Quando uma pessoa tem muita melanina tem pele negra, se tem um bocadinho menos de melanina, já fica mulato, se tem um bocadinho menos de melanina já fica o chamado branco e se não tem nem um bocadino é um albino”, explicou. Segundo o ministro da Saúde, a melanina é um pigmento importante porque protege o organismo contra a irradiação solar. Garrido aconselhou as pessoas albinas a não ficarem expostas ao sol. “A maior parte das pessoas albinas morrem de cancro da pele por causa do sol, mas se não apanharem sol não vão ter feridas na pele e com cancro da pele”, apontou.Quanto ao surgimento de feridas devido à alimentação com mariscos, o ministro da Saúde diz que “não existe uma relação directa”.
Albinos “caçados” na Tanzania e Burundi
A falta de pigmentação na pele, nos olhos e nos cabelos que têm os albinos é um estigma em muitos países da África. Segundo informações disponíveis, na Tanzania e no Burundi, nos últimos meses, dezenas de albinos foram assassinados e partes de seus corpos acabaram no contrabando alimentado pela supertição. Informações daquele país dão conta que os assassinos de albinos buscam partes de seus corpos, como dedos, órgãos sexuais, línguas e cabelo, para a venda, uma vez que se acredita que os albinos “dão sorte” no negócio. Os órgãos dos albinos assassinados no Burundi são comercializados na Tanzania e de lá para a África do Sul entre outras partes de África. A título ilustrativo, os albinos na Tanzania estão a pedir protecção especial depois de uma série de assassinatos ligados a práticas de feitiçaria. Pelo menos 25 pessoas foram mortas em 2007, a última das quais um bebé de sete meses.Uma investigação da BBC descobriu provas segundo as quais feiticeiros estariam a preparar-se para oferecer órgãos humanos para venda.Os feiticeiros estariam a tentar convencer os seus clientes que poções feitas com pedaços de corpos de albinos podiam fazê-los enriquecer.Calcula-se que existam cerca de 170 mil albinos na Tanzania, apesar do número de registados oficialmente ser muito inferior.Em Agosto deste ano, na região piscatória de Mwanza, na Tanzania, dois albinos foram vítimas de ataques horripilantes.Um homem de 52 anos de idade foi esfaqueado até à morte no quintal da sua própria casa quando fazia uma refeição com a mulher.Na última semana de Agosto de 2005, um bebé de sete meses foi arrancado dos braços dos pais e morto por um grupo de pessoas armadas com catanas.Por causa desta onda de assassinatos, o Presidente Jakaya Kikwete ordenou a realização de um censo de todos os albinos na Tanzania para lhes oferecer protecção.Contudo, há crescentes suspeitas de que elementos da polícia tanzaniana poderão estar envolvidos no comércio.Apesar de mais de 150 pessoas terem sido detidas em conexão com esses crimes, não houve qualquer acusação bem sucedida.
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