Acabei de ver Santiago, documentário de João Moreira Salles, que aparentemente, trata do ex-mordomo argentino de sua rica família. Santiago, o ex-mordomo, devia ser uma figura fascinante. Ele construiu um mundo só seu, habitado pelas mais altas estirpes das nobrezas de diversas sociedades ao longo da história. Ao morrer, deixou cerca de 30 mil páginas com anotações minuciosas em vários idiomas sobre a nobreza de lugares tão díspares como Veneza e tribos ameríndias. Santiago orava em latim, tocava castanhola, tocava Beethoven no piano dos Moreira Sales vestido de fraque. À noite, sem ninguém perto, Santiago tocava Beethoven de fraque. "por que essa roupa, Santiago?", perguntou-lhe uma noite João, ao surpreender o serviçal ao piano. "Porque é Beethoven, meu filho", foi a resposta do argentino.
Santiago , o filme, praticamente só me deu essas informações sobre Santiago, o homem. Aprendi mais sobre a família Moreira Salles, sua mansão e o processo de elaboração do documentário do que sobre o mordomo. E confesso que não estava interessado em aprender sobre nada disso. Queria ter aprendido sobre Santiago. Afinal, o nome do documentário é Santiago, não?
Acontece que o patrão Joãozinho não ouviu o que seu subalterno Santiago tinha a dizer. Boa parte do documentário é um doloroso exercício de dominação e sufocamento da palavra do Outro. Comovi-me quase às lágrimas ao ver Santiago tendo que repetir a mesma tomada diversas vezes, porque sinhô João queria assim ou assado. Irritei-me com o tom, por vezes algo ríspido e impaciente, da assistente de produção dando ordens que às vezes não eram devidamente entendidas por um estrangeiro de 80 anos de idade.
E Santiago tinha muito a dizer. Por vezes tentou, mas não pode. Uma hora, ao comentar sobre os suntuosos bailes na mansão dos Moreira Salles que iam até às 7 da manhã, em meio ao deslumbre, Santiago deixou escapar um "e eu tinha que ficar lá o tempo todo..." Eu, como bom filho duma também ex-serviçal, entendi perfeitamente esse "desilze"...
Ao final, o cineasta reconhece que não quis ouvir Santiago, reconhece que havia uma barreira intransponível de classe entre os 2. Foi essa cena que quase me levou às lágrimas; João dizia a Santiago pra fazer algo "como ele quisesse", ao mesmo tempo em que lhe dizia quando e como fazê-lo! E então, o descarte supremo: Santiago pede pra dizer algo que considera importante e é cortado, dizendo que aquilo não era importante. O "não, não é?" com sotaque carregado de Santiago pegou fundo, juro.
Depois da admissão da surdez de classe de João, o cineasta resolveu botar uma espécie de PS ao documentário , ao qual chamou de "final edificante". Nele, elegantemente citando um filme japonês, somos brindados com a platitutde de que a vida não faz muito sentido mesmo...
Meu caro João, será que a vida, per se, não faz muito sentido, ou ela passa a não fazer muito sentdo quando alguém tem que ficar em pé até as 7 da manhã pra diversão dos outros e ao final, sequer é ouvido? Antes de ser final edificante, esse fecho me parece uma saída fácil demais, me desculpe.
Enfim, Santiago, o filme, deveria ser obrigatório pra qualquer oralista, sociólogo, jornalista etc aprender como NÃO conduzir uma entrevista.
Eu queria ter mandado esse trailer pro amigo Carlito - que é argentino - ver como a voz do Santiago se parecia com a dele, mas não pude. Nem no trailer dão ouvidos ao mordomo!
sábado, 16 de maio de 2009
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