Vocês já repararam como frequentemente estabelecemos relações de causa e efeito, de continuidade ou analogia aos processos da memória? Quando pensamos em nossa história pregressa tendemos a relacionar os fatos e acontecimentos vividos a fim de construir uma narrativa coesa, coerente e (con)seqüente. Creio que deva ser nossa necessidade de atribuir sentido à nossas vidas uma das causas desse processo. Por vezes, mesmo naqueles balanços diários que fazemos de como foi nosso dia, construímos narrativas recheadas de analogias e interconexões. Isso aconteceu comigo ontem à noite, ao colocar a cabeça no travesseiro e pensar sobre o que havia feito durante o dia e planejar o que farei hoje. Acabei concluindo que duas coisas que li e um filme que vi podiam ser elencados como mini-narrativa coesa de significações, pelo menos para mim.
Na parte da tarde tive que interromper a divulgação do blog para ler um artigo que jazia há algumas semanas em meu computador à espera de parecer para possível publicação. Tratava-se de um texto que tentava provar que a filosofia de Nietzsche não é nazista, mas sim, havia sido distorcida ao bel-prazer de Hitler e seus ideólogos na consecução das teorias de raça pura e eliminação dos “socialmente indesejáveis” levadas à cabo pelos alemães. O artigo citava, além dos judeus, os homossexuais, que também foram duramente perseguidos pelos nazistas. No caso dos gays nem seria necessário o trabalho de extermínio nazista porque o código penal germânico se encarregava de puni-los. O infame Parágrafo 175 – eliminado apenas várias décadas após o término oficial do pesadelo hitlerista – condenava os praticantes masculinos do homoerotismo a duras penas.
Após o término da leitura do artigo, decidi dar uma passeada pelas notícias porque com essa história de divulgação do trabalho em prol da causa albina tenho ficado algo alheio ao que passa pelo mundo. Descobri matéria a respeito da psicóloga Rozângela Alves Justino, que oferece tratamento para a “cura” de homossexuais. Dentre os vários absurdos sem nenhum fundamento científico excretados pela moça, um me chamou mais a atenção como pessoa albina. Em relação ao projeto de lei que criminaliza a homofobia, Rozângela qualificou-o como cerceamento da liberdade de expressão. Seguindo essa lógica torpe até às últimas conseqüências, isso equivaleria dizer que nós albinos não podemos nos queixar ou protestar quando nos insultam nas ruas, afinal, tratar-se-ia da “liberdade de expressão” das pessoas que, portanto, poderiam nos xingar à vontade. Interessante essa lógica, não? Quer dizer que os nazistas foram podados em sua liberdade de expressão quando foram obrigados a cerrar os campos de extermínio? Se eu encontrar Rozângela poderei xingá-la e ela nada poderá fazer porque estarei exercendo minha liberdade de expressão? E para piorar – se é que isso é possível -, Justino acrescenta que o projeto também cerceia o direito de “pensamento científico”. O que entende ela de pensamento científico ao dizer o monte de asneiras que li? Rozângela seria ótima colaboradora dos nazistas porque o pensamento dela é similar ao deles. E ela que não se atreva a achar ruím comigo se acaso ler isso. Estou exercendo meu direito de expressão, Rô! Se ele funciona para você, deve funcionar para mim também. Ou não?
À noite vi outro filme chileno, Muñeca (2008), que aborda o tema da paternidade gay. Ou pelo menos tenta. Não escolhi ver o filme devido ao artigo que lera ou pela reportagem sobre Rozângela; havia uma série de opções e simplesmente coloquei no dvd esse filme. Mas, a sincronicidade jungiana acabou prevalecendo e não pude deixar de sorrir em determinado momento ao imaginar o pânico da psicóloga imaginando altas conspirações homossexuais para tomada do poder! O filme não é bom, a não ser pelas atuações. O roteiro é frouxo, apresenta vácuos incríveis e não chega a lugar algum. Entretanto, apresenta uma visão de mundo muito mais tolerante e diversa do que a propagada pelos nazistas e pela psicóloga brasileira.
quarta-feira, 15 de julho de 2009
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