Roberto Rillo Bíscaro
(Acima, reprodução da capa frontal do livro Pride and Prejudice and Zombies. A ilustração da capa é uma paródia das ilustrações presentes em capas de romances clássicos tipo Wuthering Heights e afins. Há uma moça com roupas do século XIX, mas a parte inferior do rosto está carcomida, à moda dos filmes de zumbi. Os olhos dela são vermelhos e o vestido manchado de sangue)
Numa fria manhã de junho, recebi email dum grande amigo, fã de filmes de zumbi. Nele, havia link pralgum produto novo. Achei que se trataria dum filme, mas não. Era o link prum livro que prometia ser uma mistura de Pride and Prejudice - clássico romance do início do século XIX, escrito pela inglesa Jane Austen - com história de zumbis! Achei a idéia tão divertida que repassei o link adiante pralguns amigos. E continuei checando emails, vendo as notícias na net, enviando links e notícias pra amigos.
Pois não é que nem meia hora mais tarde, havia um email na minha caixinha, de outro amigo, me dizendo que justamente me comprara o tal livro de presente em Nova York??? Ele acabara de chegar de dupla viagem internacional: EUA e Índia. Antes de viajar, me pedira uma tradução do português pro inglês, pra ontem. Como ele é daqueles amigos pros quais eu daria o único prato de comida que tivesse, sempre que me pede pra pôr preço respondo com algo do tipo “relax, dude!” Ele vive me quebrando galhos e eu não faço as traduções ou revisões por dinheiro.
Ele contou que vira diversas pessoas com o livro nas mãos no metrô e na Universidade de Columbia. Como sabe que gosto de Jane Austen e filmes de terror (embora zumbis não sejam exatamente a minha praia...), achou que eu me interessaria em ler o livro.
Pride and Prejudice and Zumbis saiu este ano e a capa ostenta o nome de Austen, juntamente com o de Seth Grahame-Smith. Funciona como se fosse co-autoria entre os 2. Na capa de trás, é dito que Grahame-Smith “uma vez freqüentou um curso de literatura inglesa”. Sempre desconfio desse tipo de falsa modéstia. É como se quisessem me dizer que o resultado final do trabalho foi mais fruto de inspiração ou genialidade do que de estudo e conhecimento e pesquisa. Smith pode até querer diminuir a importância do curso colocando-o como um evento no passado, que aconteceu “uma vez”, dando até a impressão de mero “acidente”. Mas não me convenceu. Ele conhece muito bem a estrutura narrativa do romance, assim como também conhece as estruturas sintáticas e vocabulares do inglês da época. Ele estudou bastante a obra pra poder escrever esse mix de Austen com zumbis. Há muito mais de transpiração no livro do que de inspiração. E isso tanto no sentido positivo como negativo.
A premissa é a mesma do romance de Austen: a história das irmãs Bennet procurando casamento, especialmente as das irmãs Lizzy, Jane e Lydia. Todas as personagens estão lá, especialmente, é claro, Mr Darcy, favorito entre os favoritos de quem procura o homem ideal. É a mesma história de superação de pré-conceitos e orgulhos infundados, que acaba em casamentos.
Há um pequeno grande detalhe, porém: a Inglaterra encontra-se infestada por uma praga de zumbis que já dura décadas. Muitas moçoilas aprendem as “artes mortais” com instrutores chineses ou japoneses (estes últimos são pras classes mais elevadas) e são mestras no uso de Katanas, têm dojos em casa e seguem rígidos códigos de honra orientais. Quando casam, são obrigadas a abandonar a vida de guerreiras pra se dedicarem aos maridos, afinal, não é de bom tom que uma dama casada lute. Isso é coisa praquelas que ainda não tem marido.
O livro tem algumas partes engraçadinhas e um trocadilho entre as várias significações possíveis da palavra “ball” me fez rir alto a ponto de ter de interromper a leitura por alguns segundos pra enxugar umas lagriminhas. “Ball” pode ser “baile”, “bala” (munição), e, “bola”, que, claro, pode ser tanto o objeto pra se brincar quanto ter conotação sexual. O autor faz trocadilhos com vários dos significados e um deles foi o que me fez rir alto. Em Pemberley, após um incidente com zumbis, no qual Darcy aniquilara um bando deles com seu mosquete, ele diz a Lizzy algo como “My balls are entirely at your disposal, Miss Bennet”. Assim, fora do contexto vocabular e estilístico a coisa fica sem graça, mas o efeito disso no tom formal dos diálogos é realmente hilariante. Fico imaginando como um tradutor captaria tal polissemia. Bom, mas isso não é problema meu! Ah, os editores deveriam providenciar uma revisão ortográfica melhor pras futuras edições. O começo, especialmente, apresenta uma série de erros de digitação. Parece até o meu blog!
À parte uma luta e outra com zumbis, a prometida junção dos dois enredos nunca se dá em nível mais profundo. As lutas são sempre periféricas ao enredo que realmente interessa e, diga-se de passagem, bem poucas. São páginas e páginas e páginas sem zumbi algum. Austen é muito mais forte do que Smith; ele escolheu páreo duro pra brincar, e, pra mim, não se deu bem. A trama dos zumbis funciona como adendo numa história que já foi magistralmente narrada pela inglesa.
Smith consegue, inclusive, ser mais moralista no século XXI do que Austen o foi no início do XIX. No romance original, depois de Lydia ter fugido com Mr. Wickham, Mr. Darcy resolve toda a situação pro nome dos Bennet não cair na lama. Ele financia o casamento, paga as dívidas de Wickham e o tolo casal se muda pralgum lugar no norte da Inglaterra.
Na versão pós-moderna, acontece a mesma coisa, entretanto, Wickham e Lydia são castigados pela imprudência e mal-comportamento. Ele é deixado paraplégico por Mr. Darcy e Lydia é obrigada a viver com um marido que defeca nas calças quando contrariado (e ela o ama mesmo assim). Até é cômico e de acordo com a proposta do romance, mas quem disse que a comédia não pode ter a função de punir supostos desvios sociais e morais?
(Abaixo vídeo com a canção Living Dead Girl [Garota Morta-Viva], do Rob Zombie)
(Acima, reprodução da capa frontal do livro Pride and Prejudice and Zombies. A ilustração da capa é uma paródia das ilustrações presentes em capas de romances clássicos tipo Wuthering Heights e afins. Há uma moça com roupas do século XIX, mas a parte inferior do rosto está carcomida, à moda dos filmes de zumbi. Os olhos dela são vermelhos e o vestido manchado de sangue)
Numa fria manhã de junho, recebi email dum grande amigo, fã de filmes de zumbi. Nele, havia link pralgum produto novo. Achei que se trataria dum filme, mas não. Era o link prum livro que prometia ser uma mistura de Pride and Prejudice - clássico romance do início do século XIX, escrito pela inglesa Jane Austen - com história de zumbis! Achei a idéia tão divertida que repassei o link adiante pralguns amigos. E continuei checando emails, vendo as notícias na net, enviando links e notícias pra amigos.
Pois não é que nem meia hora mais tarde, havia um email na minha caixinha, de outro amigo, me dizendo que justamente me comprara o tal livro de presente em Nova York??? Ele acabara de chegar de dupla viagem internacional: EUA e Índia. Antes de viajar, me pedira uma tradução do português pro inglês, pra ontem. Como ele é daqueles amigos pros quais eu daria o único prato de comida que tivesse, sempre que me pede pra pôr preço respondo com algo do tipo “relax, dude!” Ele vive me quebrando galhos e eu não faço as traduções ou revisões por dinheiro.
Ele contou que vira diversas pessoas com o livro nas mãos no metrô e na Universidade de Columbia. Como sabe que gosto de Jane Austen e filmes de terror (embora zumbis não sejam exatamente a minha praia...), achou que eu me interessaria em ler o livro.
Pride and Prejudice and Zumbis saiu este ano e a capa ostenta o nome de Austen, juntamente com o de Seth Grahame-Smith. Funciona como se fosse co-autoria entre os 2. Na capa de trás, é dito que Grahame-Smith “uma vez freqüentou um curso de literatura inglesa”. Sempre desconfio desse tipo de falsa modéstia. É como se quisessem me dizer que o resultado final do trabalho foi mais fruto de inspiração ou genialidade do que de estudo e conhecimento e pesquisa. Smith pode até querer diminuir a importância do curso colocando-o como um evento no passado, que aconteceu “uma vez”, dando até a impressão de mero “acidente”. Mas não me convenceu. Ele conhece muito bem a estrutura narrativa do romance, assim como também conhece as estruturas sintáticas e vocabulares do inglês da época. Ele estudou bastante a obra pra poder escrever esse mix de Austen com zumbis. Há muito mais de transpiração no livro do que de inspiração. E isso tanto no sentido positivo como negativo.
A premissa é a mesma do romance de Austen: a história das irmãs Bennet procurando casamento, especialmente as das irmãs Lizzy, Jane e Lydia. Todas as personagens estão lá, especialmente, é claro, Mr Darcy, favorito entre os favoritos de quem procura o homem ideal. É a mesma história de superação de pré-conceitos e orgulhos infundados, que acaba em casamentos.
Há um pequeno grande detalhe, porém: a Inglaterra encontra-se infestada por uma praga de zumbis que já dura décadas. Muitas moçoilas aprendem as “artes mortais” com instrutores chineses ou japoneses (estes últimos são pras classes mais elevadas) e são mestras no uso de Katanas, têm dojos em casa e seguem rígidos códigos de honra orientais. Quando casam, são obrigadas a abandonar a vida de guerreiras pra se dedicarem aos maridos, afinal, não é de bom tom que uma dama casada lute. Isso é coisa praquelas que ainda não tem marido.
O livro tem algumas partes engraçadinhas e um trocadilho entre as várias significações possíveis da palavra “ball” me fez rir alto a ponto de ter de interromper a leitura por alguns segundos pra enxugar umas lagriminhas. “Ball” pode ser “baile”, “bala” (munição), e, “bola”, que, claro, pode ser tanto o objeto pra se brincar quanto ter conotação sexual. O autor faz trocadilhos com vários dos significados e um deles foi o que me fez rir alto. Em Pemberley, após um incidente com zumbis, no qual Darcy aniquilara um bando deles com seu mosquete, ele diz a Lizzy algo como “My balls are entirely at your disposal, Miss Bennet”. Assim, fora do contexto vocabular e estilístico a coisa fica sem graça, mas o efeito disso no tom formal dos diálogos é realmente hilariante. Fico imaginando como um tradutor captaria tal polissemia. Bom, mas isso não é problema meu! Ah, os editores deveriam providenciar uma revisão ortográfica melhor pras futuras edições. O começo, especialmente, apresenta uma série de erros de digitação. Parece até o meu blog!
À parte uma luta e outra com zumbis, a prometida junção dos dois enredos nunca se dá em nível mais profundo. As lutas são sempre periféricas ao enredo que realmente interessa e, diga-se de passagem, bem poucas. São páginas e páginas e páginas sem zumbi algum. Austen é muito mais forte do que Smith; ele escolheu páreo duro pra brincar, e, pra mim, não se deu bem. A trama dos zumbis funciona como adendo numa história que já foi magistralmente narrada pela inglesa.
Smith consegue, inclusive, ser mais moralista no século XXI do que Austen o foi no início do XIX. No romance original, depois de Lydia ter fugido com Mr. Wickham, Mr. Darcy resolve toda a situação pro nome dos Bennet não cair na lama. Ele financia o casamento, paga as dívidas de Wickham e o tolo casal se muda pralgum lugar no norte da Inglaterra.
Na versão pós-moderna, acontece a mesma coisa, entretanto, Wickham e Lydia são castigados pela imprudência e mal-comportamento. Ele é deixado paraplégico por Mr. Darcy e Lydia é obrigada a viver com um marido que defeca nas calças quando contrariado (e ela o ama mesmo assim). Até é cômico e de acordo com a proposta do romance, mas quem disse que a comédia não pode ter a função de punir supostos desvios sociais e morais?
(Abaixo vídeo com a canção Living Dead Girl [Garota Morta-Viva], do Rob Zombie)
Dr. Albee excelente crítica ao livro! Vou indicar seu post lá no meu blog sobre Jane Austen.
ResponderExcluirPs. Também sou professora de Inglês.
Adriana Zardini