Tenho andado tão ocupado ou vendo coisas que não merecem comentário que acho mesmo ser esta a primeira e única postagem sobre cine deste mês, não? Desde ontem pela manhã, meu ouvido esquerdo está entupido, portanto, ontem à noite, resolvi ver um filme finlandês que tinha separado já há vários meses. Legendado em espanhol, não precisava me esforçar pra entender o que diziam porque não manjo nada de finlandês. Como as legendas são em espanhol, daria pra treinar leitura pelo menos.
Hamlet Liikemaailmassa (1987), do diretor Aki Kaurismäki, transporta o trágico Hamlet shakespeariano pro universo da comédia de humor-negro ambientada na contemporaneidade corporativa da Finlândia. Boa parte da trama da peça original é aproveitada, embora algumas coisas passem a ter efeito diverso quando situadas nesse novo contexto narrativo. Pra quem não lembra, Hamlet, príncipe da Dinamarca, tem que vingar o assassinato do pai e boa parte da peça consiste dos famosos solilóquios como o “ser ou não ser” e de Hamlet procurando a verdade dos fatos. O Hamlet elizabetano tem um problema duplo nas mãos: seu pai era o rei da Dinamarca e sua morte colocara o reino em perigoso estado de caos. Quer dizer, o jovem príncipe tem um problema pessoal, mas também um social nas mãos. Quando o rei da Noruega invade a Dinamarca ao final da peça, restabelece-se à ordem no reino. A passagem da fragmentação medieval pra coesão administrativa do Estado Moderno é o que mais me interessa em quase todas as tragédias do Bardo.
A versão cinematográfica em belíssimo branco e preto do diretor finlandês nos oferece um Hamlet egoísta, egocêntrico, desinteressado em especular sobre a vida, interessado basicamente nos prazeres da carne (em vários sentidos). Por isso, não há nenhum dos famosos solilóquios ou conflito interno. O Hamlet corporativo é um bastardo que literalmente auxilia na morte do pai. Desprezível, como de resto, quase todas as demais personagens.
A peça de Shakespeare levou Harold Bloom a exageradamente afirmar que o homem moderno, psicologizado e dividido, foi inventado em Hamlet. O tom pastichento do filme finlandês revela a rasura do homem pós-moderno, à mercê de gratificações instantâneas e inexoravelmente narcisista.
Não é mau filme, pelo contrário, mostra quão perturbadoramente rasa e sem sentido é a existência pós-moderna, corporativista e midiática. A corporação da família de Hamlet pretende inundar o planeta com seus patinhos de borracha porque “aqueles japoneses nanicos” lhes estavam passando a perna no negócio madeireiro, que de resto, era de plástico. Simulacro sobre simulacro.
(Falando em Finlândia, deu vontade de ouvir Tabula Rasa, grupo de rock progressivo de lá. A canção abaixo, está no álbum homônimo dos rapazes, lançado em 1975. )
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