Roberto Rillo Bíscaro
Em minha lista dos melhores de 2009, havia 2 filmes iranianos (ver ) Só não coloquei mais porque optei eleger apenas os comentados no blog. Caso contrário, pelo menos mais um entraria na lista. Não duvido de que haja lixo produzido por lá também, mas até agora tive sorte de ver apenas produções de boas pra cima.
Ontem à noite, finalmente vi Ta’m E Guilass (1997; Gosto de Cereja, no Brasil), aclamada película do diretor Abbas Kiarostami. Creio que foi a respeito desse filme que um amigo comentou certa vez que ia do nada ao lugar nenhum. Concordo que a narrativa fuja da convencional e isso possa afugentar os acostumados a um tipo de cine mais dinâmico (por falta de melhor palavra no momento). Discordo diametralmente da opinião do amigo, porém. Ta’m E Guilass é uma verdadeira pérola em celulóide!
O enredo, com quase todo filme iraniano que assisti, é falsamente simples: Badii, um quarentão que passa quase o filme todo dirigindo seu carro, quer se suicidar. Para isso sai pedindo que o ajudem. Ele tomará uma overdose de pílulas e se deitará em um buraco. Tudo o que o ajudante terá que fazer é ir ao buraco de manhã, chamar Badii 2 vezes e, se ele não despertar, cobrir o corpo com terra.
O que mais me frustrou enquanto via Ta’m E Guilass é desconhecer totalmente sobre cultura iraniana e muçulmana em geral. Fiquei me perguntando se o ato de enterrar tem alguma importância capital nas tradições desses povos. Afinal, por que um suicida se importaria em ter seu corpo enterrado? Notem que nestes casos, seria criminoso até, falar em furo no roteiro, sob risco de interpretar uma cultura inteira com olhos ocidentais hegemônicos.
A busca por quem o ajude, leva Badii a se encontrar com homens de diversas etnias/nacionalidades. Primeiro com um jovem soldado kurdo, que foge assustado ante o pedido do motorista. A seguir, dá-se o encontro com 2 afegãos. Com um deles, um refugiado de guerra, há uma interessante discussão a respeito de como um conflito bélico afeta diferentemente as pessoas. Questionado sobre o porquê escolhera fugir de um país em guerra pra outro em guerra (no caso, com o Iraque), o afegão responde: “essa guerra não é minha, é de vocês, iranianos..”
Finalmente, Badii leva em seu carro um velho taxidermista turco. O homem conta a Badii que certa vez tentara o suicídio enforcando-se numa cerejeira, mas desistira ao provar das frutas e descobrir um novo sabor pra vida. A cereja, simbolicamente representativa da paixão, despertara no homem que trabalha com animais mortos, a paixão pela vida. Lindo...
Entretanto, a madurez de Kiarostami não pára por ai... Apesar de ser frontalmente contrário à decisão de Badii e tentar dissuadi-lo, aceita ajudá-lo porque necessita do dinheiro oferecido pra cuidar de sua filhinha doente, vida nova que ameaça fenecer e precisa de comida pra vencer a anemia. Claro que seria mais “fácil” e ao gosto dum determinado tipo de cine, construir o turco como alguém que apesar de seus problemas, não abre mão de seus ideais e crenças. O diretor iraniano provavelmente sabe que é muito fácil pensar assim quando a conta bancária está no azul... Palmas pra ele! Na verdade, acho mesmo que esse filme levou a Palma de Ouro em Cannes...
O final aberto de Ta’m E Guilass deixa o espectador imaginando se as palavras do velho turco tiveram efeito ou não em Badii. Também nunca somos informados da motivação da personagem em cometer suicídio. Tudo isso, aliado às instigantes idéias expostas nos diálogos, torna o filme um ótimo exercício pra refletir e discutir.
Filmado em grande parte dentro do carro do protagonista, jamais vemos uma imagem sequer que apresente ele e seu interlocutor juntos. Em vários momentos, tudo o que vemos é apenas o carro se movimentando ao longe pelas poeirentas e arenosas estradas iranianas (desprovidas de vida vegetal...), enquanto ouvimos o diálogo das personagens. Essas escolhas formais somente reforçam a desconexão e solidão de Badii.
Ta’m E Guilass é um triunfo do cinema iraniano. Discute a vida e a morte, além das razões pra se viver e morrer. Por vezes, pode parecer tedioso pra nós que estamos acostumados a roteiros mais “dinâmicos”, mas o resultado final compensa o estranhamento de algumas cenas.
E o filme vai a muitos lugares, sim senhor!
(Achei um vídeo dum grupo iraniano chamado Kiosk, contendo cenas de Ta’m E Guilass. Boa oportunidade pra conhecer um pouco de rock iraniano também!)
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