Roberto Rillo Bíscaro
Parte da razão pra que eu me matriculasse numa escola de inglês, em 1986, foi traduzir as letras de meu grupo de rock favorito, o Genesis. Até escrevi isso na ficha de matrícula! Meu domínio do idioma foi imensamente ajudado pelo número de entrevistas lidas com cada membro e ex-membro do grupo; pelo quantidade de vezes que cada canção era ouvida e a letra decorada.
Um dos ex-membros, Peter Gabriel, foi quem me fez voltar os ouvidos pra paragens mais longínquas. Suas pesquisas musicais nos levaram a rincões insuspeitos dos 5 continentes. Peter descobria e os fãs mais devotos iam atrás pra conhecer. Coisa de fã mesmo. E eu era um dos devotos do arcanjo Gabriel.
Nascido na classe-média alta britânica há 60 anos, Gabriel adorava cantores negros norte-americanos, mas acabou sendo vocalista e principal figura do Genesis, cuja filiação ao muitas vezes esnobe rock progressivo, dava bem pouco espaço pras influências R’n’B. Em 1974, Gabriel deixou a banda, que passou pro coando de Phil Collins e iniciou sua caminhada ao super-estrelato pop nos anos 80.
Gabriel escolheu caminho mais experimental; longe de ser inacessível, porém. Seus álbuns tornavam-se cada vez mais densos, intrincados. Meu favorito ainda é o Peter Gabriel IV (1982), com suas quase assustadoras texturas tribais, onde várias das canções priorizam mais a “atmosfera” do que propriamente a melodia. Nas letras, uma mistura de ativismo político, Jung, espiritualismo indígena norte-americano e, claro, sexo.
À influência dos cantores negros norte-americanos foram se somando aquelas dos músicos dos quatro cantos de globo com o qual PG entrava em contato. A rica voz - cada vez mais rouca - de Gabriel nunca foi muito ressaltada pela imprensa musical, impressionada (ou não) pela complexidade dos arranjos e produção de seus álbuns.
Agora, Gabriel teve vontade de mostrar que é um dos grandes vocalistas do rock inglês de sua geração. Pra realmente realçar e valorizar sua habilidade e sensibilidade vocais, decidiu montar um álbum sem guitarras ou baterias. Os arranjos são todos orquestrais, com muitos violinos, violoncelos oboés e afins. Responsável pelos arranjos é John Metcalfe, que fez arranjos de cordas pra músicos como Morrissey e foi parceiro de Viny Reilly, no cultuado e independente Durutti Column.
Outra decisão importante de Gabriel pra colocar sua voz em evidência, e não suas habilidades de compositor, foi organizar um álbum apenas de releituras de canções de outros artistas.
Livre da composição e da produção, Gabriel dedicou-se a esmiuçar emocionalmente cada uma das 12 canções escolhidas e torná-las “suas”. Desse esforço, resultou o CD Scratch My Back, lançado na Inglaterra no último dia 15 e gravado no estúdio Real World, do próprio Gabriel (o álbum de Sade, comentado aqui semana passada, também foi gravado no Real World.)
As 12 canções escolhidas atestam pro fato de que Gabriel é um coroa moderno. Longe de escolher um monte de velharias obscuras pras gerações mais jovens (o que não faria mal nenhum, na verdade...), o cantor regravou compositores como David Bowie, Paul Simon, David Byrne e Neil Young. Mas, não ficou apenas em seus coetâneos. Peter canta Regina Spektor, Radiohead e Elbow também.
Se queria provar que sabe cantar com alma, PG conseguiu, e, com louvor. Sua voz vai do trêmulo murmúrio ao esganiçar do agudo, do quase sussurro ao grito. “Heroes”, impecável cover de Bowie, a adorável “The Book of Love”, dos americanos do Magnetic Fields e a nuançada e complexa “My Body is a Cage” , do Arcade Fire, estão entre minhas prediletas.
Scratch My Back padece dum problema na produção, porém. Muitos dos arranjos soam parecidos demais. Em casos como The Power of the Heart (Lou Reed), a interpretação fenomenal queda relegada a um arranjo açucaradamente “Disney”. Tanta sacarina e mesmice me fazem ficar um pouco com sono ou não prestar atenção em algumas partes, quando ouço o álbum.
Pra quem quer relaxar, está interessado em interpretações vindas do fundo do coração ou se convencer de que Gabriel é um grande cantor, Scratch My Back deve ser lançamento do semestre, pelo menos!
Eu, particularmente, preferiria álbum com material próprio e toda a riqueza das diferentes paisagens sônicas que o arcanjo sabe pintar com maestria!
Quem sabe ele não chama a Kate Bush ou a Björk pra produzirem o próximo álbum? (que será a segunda parte desse projeto de covers...)
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