segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O PIOR CEGO É AQUELE QUE VÊ


Roberto Rillo Bíscaro

Os 2 filmes iranianos presentes na minha lista de melhores de 2009 são do mesmo diretor: Majid Majidi. Por isso, não hesitei quando se apresentou a chance de ver outro filme escrito e dirigido por ele, Beed-e majnoon (2005).

O filme se inicia no breu; ouve-se apenas o diálogo entre um homem adulto e uma menina. Segundos depois, o esplendor de um riacho cristalino com pedrinhas coloridas ao fundo. O pai, cego, brincava com sua filha.

Youssef é o homem de meia-idade, que, apesar de sua deficiência, leva vida produtiva como professor universitário e é cercado pelo amor da esposa, da mãe e dos demais parentes, amigos e alunos. Cego desde a infância, Youssef roga a Deus para que lhe restitua a visão, afinal, já são 38 anos de cegueira e semi-dependência.

Ante a suspeita de um tumor maligno nos olhos, o professor viaja a Paris, em busca de tratamento. No Ocidente, descobre que o tumor é benigno e também que um transplante de córnea poderá restituir-lhe a tão desejada visão.

De volta a Teerã, a estabilidade de Youssef se esfacela perante o novo estado em que se encontra. Acostumado a décadas de contato com o mundo através da audição e do tato, a visão recém-adquirida desestrutura emocionalmente a personagem, que agora tem que reaprender a se relacionar com a nova situação.

Sua esposa lhe é menos atraente do que a jovem cunhada, sua carreira acadêmica passa a não fazer mais sentido e sua relação com as pessoas assume contornos puramente voyeurísticos. Sintomática a cena no metrô, onde assiste passivamente a um batedor de carteiras assaltar um homem no vagão.

Youssef tenta prestar serviços à escola para cegos onde trabalha a esposa, mas percebe que também perdeu contato com pessoas que vivem sua antiga situação. Numa classe, o diretor mostra um close duma menina albina, com olhos bem abertos. Majid Majidi, construtor de imagens esteticamente apuradas, percebe que pessoas com albinismo não ficam “estranhas” na tela. Depende da iluminação e de não ter preguiça de pesquisar.

Em Bacheha-Ye aseman (1997 - http://www.albinoincoerente.com/2009/03/ira.html ), o diretor iraniano invertera o tradicional lugar-comum das vantagens de ser campeão. Em Beed-e majnoon, outra inversão: a restauração da visão é a responsável pela desintegração emocional de Youssef. A visão, afinal, pode ser mais perniciosa do que a cegueira? Youssef é mais ”cego” agora que pode enxergar, do que quando era fisiologicamente incapaz de ver?

O filme também é sobre chances desperdiçadas e sobre as escolhas que fazemos pra nossas vidas. Youssef pediu aos deuses que lhe concedessem uma graça, mas, em suas mãos, a dádiva tornou-se desgraça...

O diretor, como sempre, brinda o público com imagens difíceis de esquecer. Particularmente importante em Beed-e majnoon é o contraste entre claro e escuro, uma das representações formais da contradição entre cegueira/visão vivida em mais de um nível pelo protagonista.

A química da película não seria tão eficiente não fosse pela performance de Parviz Parastui. O ator teve que transmitir momentos extremos de tristeza, raiva, alegria, ansiedade e desconcerto. Parastui fez excelente trabalho, conseguindo que o espectador se importe e comova com Youssef, que, apesar da “cegueira” mesmo com olhos funcionando, tem seus motivos pra agir como age e sentir o que sente.

Abaixo, a cena onde Youssef vê pela primeira vez; a alegria e também o prenúncio do que virá pela frente, quando confronta sua própria imagem refletida.

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