Roberto Rillo Bíscaro
Devido à alta qualidade técnica, roteirística e interpretativa das 2 temporadas de Epitáfios, decidi prestar atenção ao universo argentino ligado à ficção científica, suspense e terror pra TV. Por isso, quando soube da série Dromo – Nada És Lo Que Parece (2009) interessei-me. Composta de 10 episódios, o roteirista Andrés Gelos, pretende surpreender o espectador, mostrando que fatos corriqueiros podem ter explicações, motivos e conseqüências bastante diversas daquelas que aparentam.
Epitáfios tinha a chancela da internacional e rica HBO; Dromo é produção mais modesta, nacional argentina mesmo. Isso também me atraiu: interessava-me ver como os produtores adaptariam suas idéias ao orçamento forçosamente menor do que o oferecido pelas majors ianques.
O primeiro episódio é Arbol Familiar. A casa de campo da família de Agustín foi cenário pros suicídios de seu avô e de seu pai. Divorciado, desempregado, vivendo numa pensão, Agustín ainda sofre por ter visto os 2 corpos pendurados nos galhos da frondosa árvore defronte á casa. No velório do pai suicida, um dos irmãos convence Agustín a passar alguns dias na casa abandonada enquanto ele arruma comprador. Agustín tem 2 irmãos: um bonzinho - que tenta dissuadi-lo da idéia de passar temporada em local de tamanho mal agouro pra família – e outro malzinho, o bem de vida, homem de negócios. Ou seja, puro esquema de criação de personagens (em inglês esses personagens pares são chamados, ás vezes, de good cop/bad cop). Não me convenci da necessidade dramática real de Agustín ter ido pra tal casa... O irmão “malvado” fala em fazer alguns consertos enquanto a casa não é vendida, mas jamais vemos Agustín trabalhando. Pelo contrário, presenciamos visões do pai e do avô chamando o atormentado homem pra que lhe façam companhia. O roteiro pede que sejamos crédulos demais. Imaginem que a corda com a qual o avô se enforcara ainda estava na árvore! Com diriam os próprios argentinos: de terror! Na verdade, temos 2 cordas penduradas, o que me levou a perguntar por que o pai não aproveitou a corda que já estava lá. Um suicida workaholic?? Os cenógrafos pedem que sejamos cegos porque as 2 cordas são idênticas, mesmo havendo um espaço de anos entre os suicídios. Quem está acostumado a narrativas do gênero, adivinha facilmente o que acontecerá a Agustín. A pequena “surpresa” fica por conta de que sua morte não será suicida, embora todos creiam assim. Os furos no roteiro, os truques primários na construção das personagens e a produção algo desleixada tiram quase toda a força do episódio.
La Almohada é o segundo programa da série. Fernando, membro de família riquésima, detesta a avó desde criança porque ela fazia toda sorte de maldades com ele. Aos 40 anos, casado e pai duma filha, Fernando recebe chamado da mãe dando conta de que a avó estava nas últimas e desejava vê-lo. Mesmo a contragosto, Fernando acede e dirige-se à mansão familiar, onde descobre que ninguém mais do clã estava presente. Sua mãe então, lhe conta o terrível segredo de família: a fortuna fora obtida mediante pacto com o demônio, que exigira 100 almas, em troca de prover as sucessivas gerações com perenes acréscimos do capital. Desde muito, a família decidira matar-se entre si pra garantir a continuidade do trato com o Coisa Ruim. Netos matavam seus avós. Um ingrediente extra do pacto era o de que cada assassino livrava a alma do predecessor no inferno. Por exemplo: a mãe de Fernando matara sua avó, que por sua vez matara a sua e assim sucessivamente. Ou seja, pra livrar a própria mãe do fogo eterno, Fernando teria que matar sua avó, a qual ficaria por lá apenas até sua própria filha tomar seu lugar. Tudo aparentemente muito bem bolado no roteiro, mas, parece-me haver erro de lógica aí! Ora, se a cada residente novo no inferno, a alma anterior é libertada, no fim das contas o capeta ficará com apenas uma alma, a saber, a da última pessoa a chegar, a qual não terá ninguém prá livrá-la! Mas, o trato inicial não era de o Demo ficar com 100 almas? Como ficamos, então? Parece-me que o roteiro se auto-implode... Em clima de humor-negro e com partes em animação pra driblar a falta de orçamento, La Almohada é nova bola-fora de Dromo...
O terceiro episódio chama-se La Pajarera. Um jovem casal está prestes a emigrar pra Austrália (legal, assim eles podem desaparecer e ninguém se dar conta, achando que já mudaram... truque de roteiro...) e a esposa precisa ir ao asilo onde a avó estava literalmente esquecida. Ao entrar no enorme e decrépito edifício, percebe que restara apenas uma freira, a qual lhe relata que sua avó se trancara no quarta fazia meses e não saia pra nada. Isso assustava a irmã, que pede à jovem que tente convencer sua avó a abrir a porta a fim de que possa procurar outra casa de repouso, afinal, a religiosa não podia garantir quanto tempo mais agüentaria tomar conta de tudo ali sozinha, mesmo havendo uma paciente apenas. No quarto da idosa, ouve-se outra versão da historia e, apesar de a anciã manter um pássaro na gaiola, descobrimos que a verdadeira pajarera é a madre. Nada parece o que é... O roteiro não traz nada de novo e a gente já sabe qual será o fim da jovem. Até aí tudo bem, nem todo roteiro precisa trazer algo de novo. Mas, a realização é ruinzinha; a cena onde a jovem corre da freira é pífia! Uma moçona forte sendo tão facilmente subjugada por uma velha de bengala e tropeçando no meio dum corredor vazio? Ah, me deixa , né?
El Trabajo foi o primeiro que me agradou. Celeste enterra no cemitério um sapo com a boca costurada. Dentro do pobre animal, um objeto querido pelo marido, o qual quer eliminar pra se casar com Lucas, seu temperamental amante, que a ensinara a fazer o ebó. Nervosa, Celeste se esquece de cravar o punhal no batráquio, após enterrá-lo, e, por isso, o marido não desencarna tão rápido quanto o esperado. Pressionada e atemorizada pelo violento amante, Celeste volta ao cemitério onde um encontro mudará o rumo da história. Os mais escaldados com filmes de suspense e terror também logo imaginam o que Celeste fará pra se livrar do perigoso Lucas, mas o fim guarda uma reviravolta de enredo que não deixa de ser divertida. Aliás, um dos defeitos de Dromo é o uso de humor – bobinho – desnecessariamente, tirando a força dos enredos, em geral previsíveis. No caso de El Trabajo, a piadinha final funcionou legal. O pessoal da PETA adoraria esse episódio (sem ironia).
Latidos é o nome do quinto programa. Carlos Sancho é uma espécie de agiota do qual ninguém gosta e que, por sua vez, só ama a si mesmo. Seus funcionários são maltratados e o detestam. O homem de meia-idade necessita urgentemente dum transplante de coração e está disposto a usar qualquer meio, mesmo ilícito, pra conseguir um. Paralela a essa trama, desenvolve-se a de seu sobrinho, que não o via há anos. Com a casa prestes a ser tomada pelo banco, o jovem necessita dum empréstimo e procura o tio em busca de ajuda. Depois da recusa inicial de empréstimo, Carlos propõe um trato: que o sobrinho se suicide a fim de que o tio possa ter seu coração; em troca, Sancho garante que pagará a casa e a família do sobrinho ficará amparada pra sempre. Premissa interessante, perdida em episódio longo (mais de 50 minutos!), cheio de momentos desnecessários e uma personagem que atua como deus ex machina. Desnecessário dizer quem perde o coração no final, né?
La Otra Puerta, até agora, é disparado o melhor episódio de Dromo! Uma trama sobre viagem no tempo, coisa que adoro! Martin vai com a namorada a um hotel, onde quer se hospedar pra ter um tempo pra pensar sobre a vida. (Pelos paralelepípedos da rua, pode ter sido filmado no bairro de Santelmo, em Buenos Aires...) Tânia abomina o estado lastimável em que se encontra o quarto e propõe comprar algumas coisas pra Martin. Quando fica só, o homem descobre uma porta que o leva 30 anos de volta. Ao sair do hotel é confundido com um assassino em série, seu duplo perfeito. Condenado a 30 anos de cárcere, sabe que ao fim desse período terá que evitar que a namorada seja morta pelo serial killer verdadeiro, que tomara seu lugar no futuro. Um refresco na mediocridade das demais histórias. Curiosidade: os Martins jovem e velho são interpretados por pai e filho na vida real, Jorge e Federico D’Elia (o primeiro atuou em El Abrazo Partido, de 2002, segundo filme da “trilogia do pai”, do cineasta argentino Daniel Burman).
Ovo é outro acerto em Dromo. O jovem Inácio (Nacho; curti a ironia que só pode ser entendida vendo-se o episódio) vive uma existência pra lá de regrada e chata! Os pais são viciados em hábitos alimentares saudáveis, exercícios físicos e afins. Comportam-se como robôs programados pra fazer sempre a mesma coisa. Inácio tem horário pra tudo e os pais o tratam tiranicamente sob a pátina de pseudo-liberdade e o papo de “respeitar o espaço” individual etc. O jovem questiona o porquê de não poder comer, pelo menos uma vez, ovos fritos, batatas fritas e milanesa (prato comum na Argentina. Mmmmm). Sua dieta não apenas é milimetricamente balanceada,como também repetitiva. Toda quarta-feira, ovos cozidos e tofu, por exemplo. Uma vida sem surpresas, até que ele descobre um humanóide preservado em uma redoma de vidro no sótão. Só então, Inácio descobre a origem verdadeira de seus pais e entendemos porque seu apelido é Nacho. Bom enredo, apenas ligeiramente comprometido por concessões ao fato de ser exibido na TV e também por questões orçamentárias. Mesmo assim, a cena onde um jovem de calção é besuntado com mostarda e ketchup poderia ter sido evitada. Em tempo: estranhei ver Gastón Paúls fazendo uma pontinha nesse episódio. No começo da década ele estava em tantos filmes, agora parece que sumiu...
El Manto Chino, outra história divertida! Leandro, cujo pai mágico desaparecera, vai trabalhar com seu tio, outro mago, paranóico e mesquinho. El Profesor, como exige ser chamado, tem uma assistente catatônica, a qual domina e com quem mantém relações sexuais quando quer, sem encontrar a menor resistência. Em seu primeiro dia com o tio, Leandro fica só em casa do mágico e, depois de fumar um baseado, começa a brincar cm os objetos usados nos truques do Profesor. É quando descobre que pode fazer coelhos (des)aparecem de dentro dum baú, simplesmente cobrindo-os com um manto. Ao ver parte de seu nome escrito em um espelho, percorre a habitação procurando o autor da suposta brincadeira e encontra a jovem desprovida de emoções. Ela lhe revelará que o desaparecimento do pai de Leandro não foi por vontade própria e acrescenta que ela própria também desapareceu!
La Caja é dividido em 2 partes. Um grupo de ladrões rouba um banco e refugia-se num bar, onde fazem reféns. Inicia-se tensa negociação com a polícia, que não sabe quantos cativos existem. Por isso, o líder dos assaltantes apresenta a idéia de que 2 do bando se passem por reféns e saiam livres. Depois que os outros 2 fossem presos, aqueles se apresentariam como culpados pra confundir o inquérito. Essa linha da trama é logo abandonada porque os reféns começam a ser mortos e ocorre o envolvimento de altos escalões do governo na história. A tal caixa roubada contém fotos comprometedoras de alguém muito poderoso, que não poupará esforços ou vidas pra que desapareçam. O episódio tem diversos plot twists, o que certamente desagradaria alguns críticos. Particularmente, curto bastante plot twists e achei La Caja interessante. E só.
O que me desagradou foi a rememoração da primeira parte, antes da segunda. Durou excessivos 21 minutos! 15 minutos mais e teriam reprisado tudo! Menos do que má edição, isso me cheirou a subestimar a inteligência do público. Mesmo em seus melhores episódios, Dromo padece de repetição desnecessária de informação, como se quem assistisse não fosse capaz de entender, ás vezes, o óbvio.
Ao fim e ao cabo, Dromo é uma série bastante irregular, onde os bons momentos e idéias promissoras infelizmente não superam a mediocridade do conjunto. Descontado o problema orçamentário, a série carece de roteiros mais maduros e azeitados.
(A abertura de Dromo.)