terça-feira, 6 de abril de 2010

PRECONCEITO E REEDUCAÇÃO

Um brilhante ex-aluno de sétima e oitava séries motivou-se a escrever um texto sobre mim, preconceito, inclusão e a questão das cotas.
Renato Muçouçah é doutorando na área de Direito. O texto abaixo foi originalmente publicado no jornal Diário de Penápolis, onde o jovem mantém coluna semanal. Ele me autorizou publicação no blog, pela qual agradeço.

Preconceito e reeducação: o caso do “Albino Incoerente”
Talvez hoje eu inicie a coluna de uma maneira um pouco diferente, embora à guisa de tratar do mesmo tema de sempre, o direito. Gostaria de falar, como testemunha, de uma figura demasiadamente conhecida em Penápolis: Roberto Rillo Bíscaro ou, para o mundo virtual (em outras palavras, para o mundo todo), o “Albino Incoerente”, que recentemente brindou o Brasil com seu depoimento pessoal em pleno horário nobre da Rede Globo de Televisão.
Roberto foi meu professor de inglês durante o ensino fundamental. À época, tal como relatou, era chamado por apelidos jocosos como “rato branco” ou, simplesmente, “the ghost” (o fantasma). Tínhamos uns 13 ou 14 anos de idade e éramos, todos nós, repletos de preconceito em relação a tudo quanto fosse novo ou diferente: possivelmente pelo fato, como pretende Gabriel García Márquez, de que as nossas palavras eram tão poucas, e as coisas tão novas, que para defini-las precisávamos apontá-las com os dedos.
Foi este dedo em riste que a figura corajosa de Roberto, Mr. Robert ou, agora, o “Albino Incoerente” logrou desarmar ao longo de toda a sua vida. Furtou a caneta de diversos juízes sentenciantes para, ele mesmo, rabiscar as letras de seu destino e mostrar, “urbi et orbe”, à cidade e ao mundo, o fascínio que desperta seu precioso dom de inteligência – uma das mais brilhantes e destacadas que já pude constatar em todas as minhas longas andanças, no decurso deste tempo de vida. Como ele mesmo disse, “albino, filho de empregada doméstica” e professor doutor em Letras pela USP, com teses acerca do novo teatro norte-americano. Sem dúvidas, um feito extraordinário.
Pessoas como Roberto são raras, pois ele deve atingir o conceito que se tem de “herói”: quem venceu tudo e todos, mesmo estando praticamente tudo e todos em seu absoluto desfavor. Ainda assim, não podemos nos esquecer de que nem todos, infelizmente, dispõem desta força gigantesca para superar as adversidades. Ninguém está obrigado ao heroísmo como, aliás, o professor Roberto quer ensinar-nos com seu admirável exemplo. Com sua superexposição, como ele mesmo o disse, quebrou preconceitos, aproximou-se de pessoas das mais diversas tendências e concepções de mundo e, assim, mostrou-nos a todos que somos iguais, sejamos brancos, negros, indígenas, orientais ou, em qualquer destes casos, albino.
Não sei se tenho o direito de tomar Roberto como exemplo mas, como sou atrevido, faço-o sem pedir licença: o que seria de qualquer um de nós, se não conhecêssemos o brilhantismo de um “Albino Incoerente”? Seríamos – ao vermos uma pessoa albina – como aqueles distantes meninos de 13 anos de idade, que para descrever algo de diferente precisavam apontar com os dedos, colocar apelidos degradantes sendo, pois, um tanto algozes e um pouco vítimas da própria ignorância?
Por razões como estas sou favorável à política de cotas para deficientes no trabalho, tal como definido na Lei 8.213/91. Os senhores certamente questionarão: e albinismo é deficiência? Direi, enfaticamente, que não. Todavia, qual o verdadeiro objetivo desta Lei, que prevê percentuais obrigatórios de contratação para pessoas deficientes, na percentagem de 2% do número de empregados para empresas com até 200 trabalhadores, 3% naquelas de 201 a 500 empregados, 4% para empregadores que tenham de 501 a 1.000 obreiros, e 5% para quem empregue mais de 1.001 pessoas? Por obviedade, o motivo é patente: buscar conferir garantias de emprego a quem, em condições diferentes, não teria chances para disputar em igualdade as chances para uma oportunidade de trabalho. Porém eu acredito que é a sociedade, e não os deficientes, a verdadeira beneficiada com esta medida. Claro que a Lei tem seus defeitos: muitas vezes não é cumprida e, quando é, dá-se preferência a deficientes físicos (surdos, cegos, cadeirantes, vítimas de paralisia, etc.) em detrimento de deficientes mentais com plena capacidade para o trabalho, numa clara demonstração da discriminação ainda existente.
Ainda assim afirmo que a sociedade é a grande beneficiária de medidas como esta porque, de 20 anos para cá, os deficientes passaram a ter maior visibilidade. Quase todos nós temos de, obrigatoriamente, conviver várias horas de nossos dias com pessoas diferentes da maioria e, por esta razão, algo que era absolutamente desconhecido torna-se conhecido, corriqueiro, diário. Quebramos os preconceitos existentes em nós mesmos ao termos de conviver, de maneira obrigatoriamente solidária, com pessoas deficientes. Aí questiono: e os albinos? E os soropositivos? Precisaremos sempre do exemplo de Roberto, para o albinismo, ou de Jean-Claude Bernardet, professor da USP e grande cineasta, assumidamente soropositivo, para que nos convençamos de que eles são seres humanos iguais a nós e que, por este simples fato, merecem muito mais que nosso respeito – merecem nossa convivência solidária, humana, próxima, amiga e afetuosa.
Por estas razões todas, afirmo-lhes: não vivemos em um conto de fadas, em que todos somos verdadeiramente iguais. Na verdade, as pessoas não são iguais; elas se tornam iguais. Roberto conseguiu tornar-se um “igual” graças à sua pertinácia e inteligência. Do contrário, será que por ele nutriríamos a mesma admiração? Fosse ele um homem mediano, teria de nós o mesmo respeito que qualquer outro homem mediano possui? Se fosse, deveria ter, embora tenha razões suficientes para acreditar que não: seria, tão-só, um “rato branco”, e Bernardet seria um “aidético pestilento”.
Assim, esta política de incentivo às contratações de pessoas dos mais diversos segmentos estereotipados (e vitimizados) da sociedade deveria ser revista, para alcançar grupos além dos deficientes. Deveria incluir, na pauta do dia, a discussão acerca desta verdadeira política de educação em direitos humanos, vez que somos criados e educados para viver em sociedade todos os dias, tenhamos nós a idade e a condição que tivermos. Enquanto em nós houver vida, ainda teremos capacidade para aprender e, também, rever pontos de vista. Isto sempre é possível. Fica o convite, portanto, para que nossos legisladores – e nisso incluo nossos Vereadores – pensem em incentivos fiscais a empresas que pretendam contratar pessoas de grupos sociais vulneráveis, como negros, albinos, soropositivos, etc. Em algumas décadas, estou certo, o preconceito tenderá não ao seu pleno ocaso, mas a uma melhora bastante substancial.


(E por falar em Renato..)