domingo, 11 de abril de 2010

UM ALBINO NA CIDADE LUZ

Texto extraído do blog dum brasileiro radicado em Paris.

O albino

O La Liberté, o boteco mais bacana do leste de Paris, tem os seus frequentadores assíduos, como o negão de tranças que volta e meia toca Bob Marley no violão público do estabelecimento ou o tiozão de barba com sua eterna camisa do Iron Maiden. Mas o melhor deles é o albino de uns quarenta e tantos anos, que nunca sai de lá. Ele é mais inevitável que almoço de domingo com a sogra em self-service, que ela vai chamar de serve-serve, e a presença inefável do tio rejeitado, que terminará a refeição palitando os dentes com uma mão na frente na boca.

Nunca vi o albino bêbado. Ou talvez nunca o tenha visto sóbrio. Tendo por base o copo constantemente encaixado na mão como se fosse a de um playmobil, talvez nem ele saiba mais diferenciar um estado do outro. Mas essa dúvida dificilmente será tirada a limpo, porque na verdade ela não importa. O que importa é a sua própria existência.

Ele é parte da paisagem do La Liberté e talvez seu principal cliente, certamente mais assíduo que os próprios donos do bar. Vive na companhia da roqueira agora careca. Amiga de boteco, certamente, mas uma relação que parece dividir apenas cervejas.

O albino foi recém-eleito meu personagem preferido do local. Ir lá e não vê-lo é como uma ida à Disney sem apertar a mão do Pateta. Fica aquela sensação chata de ter faltado algo. Compõe o figurino do distinto uma inseparável jaqueta de couro preta por cima de uma camiseta branca, cabelo pouco e branco, rosto geralmente vermelho e um ligeiro ar de "se estou aqui é porque é cool e é cool porque estou aqui". Mas à la française, blasé, como se não fosse com ele.

Meu preferido anterior era o rapper português colecionador de fitas VHS, sempre com duas ou três recém-adquiridas nas mãos. Foi ele quem me ensinou que em Portugal "fiche" quer dizer "legal". Depois disso, conto os dias para voltar a Lisboa e gastar minhas gírias locais. Mas o portuga desapareceu de lá. Na última vez que o vi, entre um verso improvisado e outro contou-me radiante que estava de mudança para Amsterdã, onde arranjara um bico, ou uma bicada, em um coffee shop. "O melhor lugar do mundo para se trabalhar", disse com brilho nos olhos vermelhos.

Mas o albino, afinal é sobre ele esse texto, eu nunca o vi chegar no La Liberté. Ou ele já está ou materializa-se de repente, ao seu lado, sem você nem perceber. E depois desmaterializa-se, podendo voltar a dar o ar da graça a qualquer momento. Alguns dizem que com um pouco de sorte ele te escolhe pra trocar uma meia dúzia de palavras. Outros dizem que com muita sorte ele não te escolhe pra nada. Eu já conversei com ele uma vez. Foi bacana. Principalmente porque ele falava de um assunto e eu de outro, completamente diferentes.

Outro dia cruzei um boteco aqui do lado de casa, onde havia uma banda tocando, e ele estava no meio da pista, pulando ao lado da amiga careca roqueira. Continuei meu trajeto e passei em frente ao La Liberté. Olhei pra dentro com o rabo do olho, como quem olha de soslaio para uma exposição de arte contemporânea marginal, e vi uma figura familiar. Parei e focalizei melhor. Era o albino, pulando ao som de Amy Winehouse ao lado da roqueira careca. Esfreguei o olho e ele sumiu novamente. Pisquei e ele surgiu ao meu lado. Entrei, pedi dois chopes e dei um pra ele, que bebeu e desapareceu mais uma vez.

(Encontrado em http://cheriaparis.blogspot.com/2010/04/o-albino.html).

(Malcolm McLaren, Catherine Deneuve e Paris só poderiam resultar em canção podre de chique!)