Os que abominam rap e funk não precisam parar de ler a postagem. Apesar do MC do título, trata-se de texto sobre um filme franco-inglês que acabei de ver, chamado Vatel (2000).
François Vatel é o nome do Mestre de Cerimônias dum endividado nobre da aristocracia rural francesa. Ao receber missiva revelando que Luis XIV passará 3 dias em sua propriedade, o aristocrata convoca o fiel Vatel pra organizar um evento do qual o Rei Sol não se esquecesse. A única forma de saldar suas dívidas seria mamando nos cofres públicos e qual modo mais lucrativo do que chefiar um exército numa guerra? Em vista da animosidade entre França e Holanda, todo o paparico pro rei tinha a chefia do exército em vista. Quem disse que guerras são prejudiciais pra todo mundo? Se fossem, já estariam extintas há milênios!
Vatel propõe-se a organizar divertimentos e banquetes dignos de agradar a seu suserano e também ao monarca absolutista. Cheio de amor por seus subalternos, o MC do século XVII também se aufere um status do qual realmente não desfruta: acredita que é peça-chave naquele momento; pra ele, a resolução à contento da situação de seu superior e até mesmo os destinos dum provável conflito franco-holandês dependem da suntuosidade e perfeição do espetáculo que preparar.
Num mundo onde a vontade real era o que contava, Vatel toma algumas atitudes confrontivas, mais adequadas a um período histórico que ainda estava por vir, a saber, a ascensão e tomada de poder pela burguesia, quase 140 anos depois.
Progressivamente, todavia, a ilusão do banqueteiro se dilui frente aos desrespeitos que ele e sua equipe sofrem. Sintomática a sequência que mostra um espetacular show pirotécnico envolvendo água e um cantor lírico sendo puxado em um carro suspenso enquanto um dos homens de Vatel morre pra proporcionar diversão aos parasitas aristocratas que não cessavam de chegar pra usufruir da boca livre.
O fausto da recepção organizada por Vatel deslumbra o rei, que deseja levar o MC pra Versalhes. O empregador do festeiro á princípio hesita, mas cede à ordem velada de Luis XIV, que quer apostar Vatel num jogo de cartas. Quando este descobre que seu destino fora decidido como o de um animal (e o filme traça esse paralelismo com uma subtrama envolvendo pássaros), as ilusões de importância individual de Vatel se desvanecem por completo e ele admite ser nada mais do que um escravo.
Vatel, o filme, funciona como metáfora da tomada de consciência da individualidade burguesa, que se revolta perante os desmandos e privilégios desmedidos da aristocracia sem coração, pra usar uma expressão dum dos próprios cortesãos. Vatel, a personagem, ainda não vivia num momento em que as condições de possibilidade permitissem uma sublevação contra a nobreza. Isso apenas seria factível no reinado de Luis XVI. Desse modo, François Vatel é quem escolhe sair de cena; no final do século seguinte, os milhares de Vateis revolucionários farão a cabeça do rei cair da cena.
Com uma produção esmerada e detalhista, a película é um prazer visual. Pena que vi a versão falada em inglês e então não pude perceber toda força interpretativa de Gerard Depardieu, intérprete de Vatel, ainda que seja o próprio ator francês que fale. Fisionomicamente, ele está ótimo como quase sempre, mas inglês não é sua língua nativa, nunca dá no mesmo do que atuar em francês...
(A cena mais visualmente impactante do filme, aquela em que o serviçal morre durante um mirabolante show pirotécnico, aquático e operático. Um deslumbre de ediçao!)