Resquícios do passado escravista latino-americano ainda podem ser facilmente detectados em nossas relações sociais, especialmente no caso do relacionamento entre patrões e empregadas domésticas, quase sempre dúbio e muito complicado. Ao mesmo tempo que os sapatos e roupas passados dos filhos da patroa pros da empregada são sinais de solidariedade, também são lembretes da hierarquia de classe. Ademais, como recusar ir á casa da patroa no domingo – fora do horário de serviço, portanto – pra arrumar a bagunça do jantar de sábado à noite com os amigos, quando a senhora deixa-lhe levar pra casa as sobras? Lealdade, amor, ódio, admiração, revolta. Não se trata de apontar mocinhos ou bandidos, apenas de registrar o complexo do fenômeno.
La Nana (2009) é um filme chileno que trata dessa atmosfera latino-americana do serviço doméstico onde as barreiras entre vida familiar e profissional são borradas, com conseqüências no mínimo estressantes, pra ambos os lados.
Raquel vive com uma família de classe média há 23 anos. Julga-se “da família”, afinal, criou as crianças, é autônoma para ralhar com elas quando preciso e estabelece sua rotina como lhe apetece. Mas, faz as refeições na cozinha e a família lhe fecha a porta na cara em determinado momento. Entretanto, dentro dos padrões latino-americanos de relacionamento servente-patrão, pode-se dizer que a família a trata “bem’: a patroa recusa-se terminantemente sequer cogitar a dispensa da serviçal, em face de escaramuças domésticas. O diretor Sebastian Silva é de uma sutileza extrema ao mostrar esse amor que fecha portas e faz festas de aniversário, chamando a homenageada ao toque duma sineta.
Aos 41 anos e dedicando-se de corpo e alma aos patrões, Raquel é infeliz e somatiza a anulação de seu eu, padecendo de fortes dores de cabeça e desmaios. A tensão entre amor e ressentimento é grande demais pra não deixar seqüelas físicas na criada virgem e desvinculada de sua própria família.
A patroa decide contratar uma ajudante pra Raquel, que, a despeito da estafa, sente-se ciumenta, traída e ameaçada. Resultado: torna a vida das colegas de trabalho um verdadeiro inferno, trancando-as pra fora de casa e fazendo toda sorte de birras, que sobram até prum gatinho trazido pela filha da patroa, com a qual Raquel estava em atrito. Raquel também não é santa! Silva não cai na fácil e mendiga dicotomia bem versus mal.
A chegada duma co-empregada que literalmente peita Raquel, mostra a ela como é importante, saudável, desejável e profissional manter uma vida privada á parte da dos patrões, que, afinal, jamais serão sua família.
Da constatação de que podia e devia ter vida própria, nascerá uma Raquel mais leve, que fará até jogging ouvindo mp3 player!
La Nana é um triunfo da sutileza e da inteligência. Filmado praticamente quase todo numa locação apenas (a casa), com câmera na mão, balançando e se enfiando na cara dos atores - deformando-as e mostrando suas rugas e imperfeições, mas acima de tudo, suas expressões – o filme dá a impressão dum desses vídeos caseiros, sem trilha sonora e com letreiros de abertura e final feitos não profissionalmente no computador.
Fundamental pra esse sucesso é a devastadora performance de Catalina Saavedra. Ela não deixa pedra sobre pedra, sendo capaz de comunicar a intrincada gama de emoções da personagem com maestria, mas sem fogos de artifício.
La Nana provavelmente não agradará aos que querem câmera “certinha”, ações mirabolantes e diálogos cabeça. As falas, ações e enquadramentos são do cotidiano, e possuem sua força que por vezes passa despercebida.
Obrigado, Márcio Wanderley, por ter me mostrado a luz de Sebastián Silva, Catalina Saavedra e de Raquel e seus amigos.
muito bom esse filme chileno. na vida sempre é bom aparecer uma I Love Lucy.
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