A mulher que escreve com os olhos
Quem é a advogada Alexandra Szafir, que, com os músculos paralisados, luta com humor pela vida, trabalha e escreveu um livro escolhendo letras com o olhar. Lançamento da obra acontece nesta segunda, em São Paulo
Antonio Carlos Prado
Quem é a advogada Alexandra Szafir, que, com os músculos paralisados, luta com humor pela vida, trabalha e escreveu um livro escolhendo letras com o olhar. Lançamento da obra acontece nesta segunda, em São Paulo
Antonio Carlos Prado
Atores profissionais não teriam feito melhor: uma mulher numa cadeira de rodas, empurrada às pressas e aos solavancos por um homem, atravessa o saguão do hospital São Luiz, em São Paulo, numa fria madrugada de abril de 2006. Se cadeiras de rodas já chamam a atenção, mesmo nesses locais, esse casal tinha algo a mais. Bem a mais: ela, a cadeirante, vestia-se como a mais legítima prostituta – com direito a botas vermelhas e saia escandalosamente curta. Ele, o condutor da cadeira, trajava-se à perfeição como um explorador de mulheres – sem lhe faltarem os sapatos bicolores e a gomalina no cabelo. A afobação se justificava, uma vez que a mulher sangrava na cabeça.
Ao alcançar o balcão da recepção, o homem foi firme: – Temos hora marcada com o professor de neurologia Acari Oliveira. Trata-se de internação. A recepcionista achou esquisito e hesitou. O macho, durão: – Ela é prostituta e eu, cafetão. Brigamos e esmurrei-lhe a cabeça. Agora, por favor, o professor Acari. Imediatamente.
O médico foi chamado, cumprimentou o casal com bom humor e a moça foi internada. O homem instalou-se no mesmo apartamento na categoria de namorado.
Como já se disse, gente afeita ao palco não teria se saído melhor e isso deixa claro que o casal em questão trabalha em outro ramo. Tal ramo, no entanto, é claro que nada tem a ver com o lenocínio. A moça se chama Alexandra Lebelson Szafir, é paulista e conhecida em todo o Brasil pelo seu brilhantismo como advogada. É filha de uma das mais tradicionais e socialmente bem colocadas famílias judias do País, estudou no difícil colégio israelita I.L.Peretz e formou-se em direito pela Universidade de São Paulo. Tem um casal de filhos (Pedro e Isabella) e três irmãos: Salomão, Priscila e o ator e empresário Luciano Szafir (gêmeo da irmã). Seu pai se chama Gabriel, sua mãe é a empresária, estilista e socialite Betty Szafir. O namorado, Álfio D’Ávila, não fica atrás: é um dos mais famosos e bem-sucedidos promotores de eventos e produtores musicais brasileiros, acumulando no currículo, por exemplo, o fato de ter colocado no palco o roqueiro Raul Seixas em seu último show antes de morrer. De volta àquela madrugada, Alexandra tinha mesmo internação marcada (aplicação de hemoglobina), estava em cadeira de rodas porque o movimento de suas pernas se fazia altamente comprometido, mas antes de ir ao hospital decidira curtir, ao lado do inseparável Álfio, uma balada à fantasia. Ao sair do carro, um Doblò branco que mais parecia ambulância e dava o conforto necessário à cadeirante, ela caíra e ferira a cabeça. Daí a encenação.
Sabe-se que o destino estoca na paciência de alguns seres humanos o mais natural e homeopático de todos os remédios, o tão decantado “rir para não chorar”. Então, por que não aproveitar, mesmo em cadeira de rodas e com dor, uma festa no próprio dia da internação? Por que não se dar esse prazer se dessa internação poderia sair um terrível veredicto? Veredictos jurídicos, esses Alexandra tira de letra em seus mais de 20 anos de advocacia, mas quão assustador pode ser um veredicto médico? Dependendo de qual seja, só cabe impetrar recurso a Deus ou só mesmo uma Alexandra para encará-lo com o seu remédio de rir – não o rir dos tolos, mas, isso sim, o bom humor da inteligência temperado na garra pela vida, na altivez e força de caráter. A hemoglobina não foi eficaz e veio assim o diagnóstico encurralando Alexandra, 43 anos, no traiçoeiro corredor da morte das doenças genéticas degenerativas.
“Alexandra é a mulher da minha vida. Fala pelos ‘cotovelos’, mas com os olhos. E nos ensina a viver” Álfio D’Ávila, promotor de eventos e produtor musical
Alexandra Szafir é portadora de esclerose lateral amiotrófica (ELA), um buraco negro e sem cura da medicina, que progressiva e avassaladoramente paralisa os músculos e leva ao falecimento. Atualmente, o máximo que ela faz, com o máximo esforço, e no máximo período de tempo, é arregalar os olhos quando Álfio lhe aponta uma letra numa tabela com o alfabeto e ela quer sinalizar que tal letra compõe a palavra que vai formular. É assim que Alexandra se comunica, é assim que Alexandra opina em processos e “redige” habeas corpus, é assim que Alexandra escreveu o livro “desCasos, uma Advogada às Voltas com o Direito dos Excluídos”, a ser lançado na segunda-feira 31 pela Editora Saraiva, em São Paulo, no Iate Clube de Santos (às 19 horas, na avenida Higienópolis, 18). “Minha irmã sempre fez tudo o que quis”, diz Priscila. “Agora era o livro, e ele está pronto.” Escrever mal, dessa forma, já é muito. Só que Alexandra dá uma aula de excelente escrita e estilo, até porque, se as mãos fazem o texto (no caso dela, os olhos), são a originalidade e a integridade do caráter do autor que compõem a obra. Mede-se isso nas palavras de seu sócio, o advogado Alberto Zacharias Toron: “O livro escancara as entranhas da Justiça Penal, expondo suas mazelas e a truculência daqueles que Michel Foucault chamava de pequenos ortopedistas da moral.” Reunindo casos reais nos quais atuou, as veias que saltam de paixão e desespero, as vozes que gritam e as mãos que se estendem no livro são de desvalidos e injustiçados. Alexandra delegava a colegas audiências de defesa de colarinho-branco, que renderiam milhões, para impedir despejo em favela. Educada para “patricinha”, o que a tornou assim? “Nada a tornou”, diz Priscila. “Nasceu com esse gene, até de cachorro de rua ela cuidava.” “Alexandra não está comprometida com a versão da advogada, ela é comprometida com a busca da justiça. Tem olho clínico para a injustiça”, diz a também sócia e advogada Heloísa Estellita.
Já paralisada pela doença, Alexandra começou a escrever com o nariz através de um programa especial de computador. Quando também o nariz se cansou, o arregalar de olhos entrou em ação. “Ela tem uma força inquebrantável”, diz Álfio. Na verdade, não só para escrever e trabalhar. No início da doença, em 2005, quando ainda andava, embora com muita dificuldade e claudicando, fez questão de ir ao show dos Rolling Stones, no Rio de Janeiro, e percorreu a pé distâncias nas quais muito atleta de fim de semana, sarado, pediria água. No domingo 23, foi com o namorado assistir ao novo filme de Woody Allen e adorou. Alexandra é lição de vida e superação, traduzida agora em livro, olhando para o dedo o namorado que lhe aponta letras – com o auxílio incansável da enfermeira Magna Coutinho.
Namorado, aliás, que é outra lição de vida. Álfio tinha tudo para “se mandar” quando Alexandra adoeceu porque eram, então, seis meses de relacionamento. Isso ainda em 2005. Ele está até hoje com a tabela de letras na mão.
Ao alcançar o balcão da recepção, o homem foi firme: – Temos hora marcada com o professor de neurologia Acari Oliveira. Trata-se de internação. A recepcionista achou esquisito e hesitou. O macho, durão: – Ela é prostituta e eu, cafetão. Brigamos e esmurrei-lhe a cabeça. Agora, por favor, o professor Acari. Imediatamente.
O médico foi chamado, cumprimentou o casal com bom humor e a moça foi internada. O homem instalou-se no mesmo apartamento na categoria de namorado.
Como já se disse, gente afeita ao palco não teria se saído melhor e isso deixa claro que o casal em questão trabalha em outro ramo. Tal ramo, no entanto, é claro que nada tem a ver com o lenocínio. A moça se chama Alexandra Lebelson Szafir, é paulista e conhecida em todo o Brasil pelo seu brilhantismo como advogada. É filha de uma das mais tradicionais e socialmente bem colocadas famílias judias do País, estudou no difícil colégio israelita I.L.Peretz e formou-se em direito pela Universidade de São Paulo. Tem um casal de filhos (Pedro e Isabella) e três irmãos: Salomão, Priscila e o ator e empresário Luciano Szafir (gêmeo da irmã). Seu pai se chama Gabriel, sua mãe é a empresária, estilista e socialite Betty Szafir. O namorado, Álfio D’Ávila, não fica atrás: é um dos mais famosos e bem-sucedidos promotores de eventos e produtores musicais brasileiros, acumulando no currículo, por exemplo, o fato de ter colocado no palco o roqueiro Raul Seixas em seu último show antes de morrer. De volta àquela madrugada, Alexandra tinha mesmo internação marcada (aplicação de hemoglobina), estava em cadeira de rodas porque o movimento de suas pernas se fazia altamente comprometido, mas antes de ir ao hospital decidira curtir, ao lado do inseparável Álfio, uma balada à fantasia. Ao sair do carro, um Doblò branco que mais parecia ambulância e dava o conforto necessário à cadeirante, ela caíra e ferira a cabeça. Daí a encenação.
Sabe-se que o destino estoca na paciência de alguns seres humanos o mais natural e homeopático de todos os remédios, o tão decantado “rir para não chorar”. Então, por que não aproveitar, mesmo em cadeira de rodas e com dor, uma festa no próprio dia da internação? Por que não se dar esse prazer se dessa internação poderia sair um terrível veredicto? Veredictos jurídicos, esses Alexandra tira de letra em seus mais de 20 anos de advocacia, mas quão assustador pode ser um veredicto médico? Dependendo de qual seja, só cabe impetrar recurso a Deus ou só mesmo uma Alexandra para encará-lo com o seu remédio de rir – não o rir dos tolos, mas, isso sim, o bom humor da inteligência temperado na garra pela vida, na altivez e força de caráter. A hemoglobina não foi eficaz e veio assim o diagnóstico encurralando Alexandra, 43 anos, no traiçoeiro corredor da morte das doenças genéticas degenerativas.
“Alexandra é a mulher da minha vida. Fala pelos ‘cotovelos’, mas com os olhos. E nos ensina a viver” Álfio D’Ávila, promotor de eventos e produtor musical
Alexandra Szafir é portadora de esclerose lateral amiotrófica (ELA), um buraco negro e sem cura da medicina, que progressiva e avassaladoramente paralisa os músculos e leva ao falecimento. Atualmente, o máximo que ela faz, com o máximo esforço, e no máximo período de tempo, é arregalar os olhos quando Álfio lhe aponta uma letra numa tabela com o alfabeto e ela quer sinalizar que tal letra compõe a palavra que vai formular. É assim que Alexandra se comunica, é assim que Alexandra opina em processos e “redige” habeas corpus, é assim que Alexandra escreveu o livro “desCasos, uma Advogada às Voltas com o Direito dos Excluídos”, a ser lançado na segunda-feira 31 pela Editora Saraiva, em São Paulo, no Iate Clube de Santos (às 19 horas, na avenida Higienópolis, 18). “Minha irmã sempre fez tudo o que quis”, diz Priscila. “Agora era o livro, e ele está pronto.” Escrever mal, dessa forma, já é muito. Só que Alexandra dá uma aula de excelente escrita e estilo, até porque, se as mãos fazem o texto (no caso dela, os olhos), são a originalidade e a integridade do caráter do autor que compõem a obra. Mede-se isso nas palavras de seu sócio, o advogado Alberto Zacharias Toron: “O livro escancara as entranhas da Justiça Penal, expondo suas mazelas e a truculência daqueles que Michel Foucault chamava de pequenos ortopedistas da moral.” Reunindo casos reais nos quais atuou, as veias que saltam de paixão e desespero, as vozes que gritam e as mãos que se estendem no livro são de desvalidos e injustiçados. Alexandra delegava a colegas audiências de defesa de colarinho-branco, que renderiam milhões, para impedir despejo em favela. Educada para “patricinha”, o que a tornou assim? “Nada a tornou”, diz Priscila. “Nasceu com esse gene, até de cachorro de rua ela cuidava.” “Alexandra não está comprometida com a versão da advogada, ela é comprometida com a busca da justiça. Tem olho clínico para a injustiça”, diz a também sócia e advogada Heloísa Estellita.
Já paralisada pela doença, Alexandra começou a escrever com o nariz através de um programa especial de computador. Quando também o nariz se cansou, o arregalar de olhos entrou em ação. “Ela tem uma força inquebrantável”, diz Álfio. Na verdade, não só para escrever e trabalhar. No início da doença, em 2005, quando ainda andava, embora com muita dificuldade e claudicando, fez questão de ir ao show dos Rolling Stones, no Rio de Janeiro, e percorreu a pé distâncias nas quais muito atleta de fim de semana, sarado, pediria água. No domingo 23, foi com o namorado assistir ao novo filme de Woody Allen e adorou. Alexandra é lição de vida e superação, traduzida agora em livro, olhando para o dedo o namorado que lhe aponta letras – com o auxílio incansável da enfermeira Magna Coutinho.
Namorado, aliás, que é outra lição de vida. Álfio tinha tudo para “se mandar” quando Alexandra adoeceu porque eram, então, seis meses de relacionamento. Isso ainda em 2005. Ele está até hoje com a tabela de letras na mão.
(Ana Carolina e Seu Jorge pra homenagear história tão linda!)
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