sexta-feira, 27 de agosto de 2010

PAPIRO VIRTUAL 2



Roberto Rillo Bíscaro

A seção de literatura de hoje traz texto que escrevi depois da leitura dum romance inglês do século XIX, que prenuncia algumas coisas que vivemos hoje.

Lembrando que o Albino Incoerente está de braços abertos pra receber contos, poemas, crônicas e resenhas dos leitores. Basta enviar pro endereço do blog.


MUDAR PRA FICAR (QUASE) IGUAL
Diversos teóricos têm escrito sobre o paulatino declínio do papel da religião ou da Igreja como elemento definidor da nação inglesa, em detrimento de outros valores como a cultura, por exemplo. Na área literária, os escritos mais iluminadores sobre o tema vem de Raymond Williams, e Terry Eagleton.

The Warden (1855), romance do inglês Anthony Trollope traz o assunto em nível simbólico. Um médico, John Bold, ataca o clérigo responsável pela gestão dum fundo de caridade que vinha desde a Idade Média, acusando-o de usufruir do dinheiro em favor próprio.

Bold é um reformista, que, a despeito de sequer trabalhar, porque vive da renda deixada pelo pai, deu-se a tarefa de consertar as injustiças do mundo. Também se coloca em questão o fato de se a tal justiça for realmente feita, remediará alguma coisa, ou beneficiará alguém.

Para deixar o conflito mais apropriado à forma romanesca, Trollope fez com que o problema social se entrelaçasse com uma questão pessoal. Bold está apaixonado pela filha mais nova do guardião do dinheiro do hospital.

Mr. Harding, que gere o dinheiro do testamento, jamais se dera conta de estar fazendo algo errado. Quando o problema se impõe, a personagem tem uma crise de consciência a respeito de estar ou não usurpando dinheiro indevido. Entretanto, há diversos complicadores na situação: é velho, tem uma filha pra garantir o dote, pertence a uma longa tradição religiosa que administrava o hospital há séculos e vive dominado pelo genro, também pertencente ao alto escalão da igreja inglesa, que afirma que se o sogro sucumbir à batalha judicial e abdicar de seu posto, colocará mais uma pá de terra no sepultamento do poder da igreja.

Difícil não se enternecer com Mr. Harding, tão gentil e delicado, quando viciosamente atacado por um jornal de circulação nacional, que o descreve como premeditadamente usando o dinheiro da igreja pra fins particulares. Trollope já vivia numa época onde a imprensa tinha o poder de fazer ou desfazer reputações.

Há pouco, assisti ao capítulo inicial da terceira temporada de Lark Rise to Candleford, série água com açúcar, da BBC, que idealiza a vida nas pequenas cidades inglesas no ocaso do século XIX. No episódio, um jovem e ambicioso jornalista trai a narradora Laura, usando trechos descontextualizados de seu diário pra escrever uma matéria sensacionalista. The Warden prova que, longe de ser anacronismo, a situação já era perfeitamente possível no reinado de Vitória.

Em nível pessoal, The Warden narra a tomada de consciência da personagem central e sua inexorável mudança, finalmente, tomando as rédeas de sua vida e fazendo o que acha correto.

Em nível social, o romance é bastante revelador. O final feliz pra denunciantes e denunciados, paralelamente à deterioração das condições de vida dos anciãos sustentados pelo estipêndio medieval, alude a uma realidade não rara em alguns movimentos reformistas/revolucionários de fachada: enquanto os detentores de algum poder acabam se unindo em alianças - a despeito de originalmente estarem em campos opostos -, aqueles em cujo nome as batalhas foram supostamente travadas, permanecem em situação igual ou pior do que a que se encontravam a princípio.

(O vídeo pra essa postagem tá bem pouco século XIX...)

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