Roberto Rillo Bíscaro
Antes da era da internet e da globalização, algumas coisas demoravam um bocado pra chegar ao Brasil. A gente sempre estava ouvindo ecos do que ocorria nos lugares ricos. A escassez de meios democratizados de acesso a produtos culturais atrapalhava muito também. O publico dependia muito de que determinada coisa caísse nas graças – ou atendesse a algum interesse - dalgum veículo de comunicação de massa pra que pudesse entrar em contato bandas, filmes ou o que fosse. Vivi 2 exemplos dessas situações esta semana.
Em 1985, a diretora polonesa Agniezka Hilland dirigiu um filme sobre os efeitos destruidores do nazismo na vida de 2 pessoas, chamado Bittere Ernte. Aqui, o filme foi batizado de Amarga Colheita e exibido quase clandestinamente, anos após seu lançamento e inclusive indicação a Oscar. Ouvimos apenas os ecos. Na verdade, não ouvi nada porque apenas conheci o filme domingo passado, quando o assisti, graças ao maior acesso que temos hoje. Que filme!
Leo Wolny é um fazendeiro austríaco, que, apesar de não concordar com o nazismo, não tem muito do que reclamar, afinal, ele mesmo lucrara com a aquisição, a preço de banana, duma propriedade vizinha, confiscada dum judeu. O homem de meia idade vive só e sente incontrolável necessidade de alguém pra satisfazer suas urgências sexuais, as quais satisfaz masturbando-se. Isso lhe provoca torturante culpa, afinal Herr Volny apresentava grande vocação religiosa na juventude e se não se tornara padre foi porque teve que abandonar o seminário pra cuidar da propriedade e do pai moribundo. Tendo trabalhado duro pra conseguir o que tem, Volny jamais conseguiu superar seu complexo de inferioridade perante as pessoas economicamente bem sucedidas que conhecera em sua juventude pobre. Mesmo a atual prosperidade não eliminara o ressentimento provocado pelo tratamento de empregado recebido na juventude. Não ajudava em nada que seus pares socialmente superiores tenham sido judeus. Uma personagem complexa e fascinante.
Um dia, Leo descobre uma fugitiva judia em sua fazenda e, ao invés de denunciá-la, esconde-a no porão. Ele não é vilão ou malvado, pelo contrário, genuinamente tenta fazer o bem. E também genuinamente sabe fazer o mal.
Rosa fugira do trem que transportava ela e sua família a um campo de concentração. Volney a defende, serve-lhe de enfermeiro, alimenta-a e, claro, apaixona-se por ela e no início não é correspondido. Mas, será que essa relação tem como funcionar? Se não bastasse abarreira religiosa que os separa, há o perene sentimento de inferioridade do homem e também questões psicológicas. Confinada no subsolo da casa, Rosa efetivamente ama Volny ou estabeleceu-se ali uma pura relação de dependência, uma espécie de Síndrome de Estocolmo? E o que acontece quando Herr Volney tem a chance de acertar as contas com seu sentimento de inferioridade social?
Brilhante a sutileza com que a diretora e o roteirista Paul Hengge resolveram cênica e dialogicamente essas e outras tantas questões, como a relatividade dos conceitos de bondade e maldade, heroísmo e covardia, conivência e luta etc.
A maior parte da ação se passa no ambiente claustrofobicamente fechado da casa rural de Volny, emprestando um tom de teatro filmado à produção. Um filme assim necessita de intérpretes virtuosos para manter a atenção do público e construir com verossimilhança e competência personagens tão psicologicamente complexas. Elizabeth Trissenaar construiu uma Rosa sólida e frágil, madura e infantil, como corresponde à nuançada personagem. O filme, entretanto, pertence a Armin Mueller Stahl, uma vez que sua personagem deu ao ator muito mais material com o qual trabalhar. E como trabalhou bem o material! Stahl hipnotiza a gente e nos leva a compreender que Leo Wolny também foi vitima do pavoroso jugo nazista, da repressão religiosa e da sociedade de classes.
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