quarta-feira, 20 de outubro de 2010

CONTANDO A VIDA 9

Uma conversa de duas senhoras católicas, num ônibus, ensejou a escrita da crônica desta quarta, onde o professor Sebe levanta a batina dos padres.


CELIBATO
José Carlos Sebe Bom Meihy

Estava num ônibus, em solitária viagem, quando ouvi duas senhoras conversando. Ambas perplexas condenavam a paternidade assumida dos filhos do ex-bispo paraguaio e atual presidente daquela república: Fernando Lugo. O trânsito lento e a longa distância favoreciam a evolução dos argumentos, que se multiplicavam por quilômetros. Havia divergências, apesar das duas, católicas, detratarem o personagem que assumira a paternidade de um filho gerado quando ainda estava sob o voto de castidade clerical. Em comum, a pecha de “padre machista”, “abusado”, “sem vergonha”, “safado” e nem faltavam “onde já se viu isso”; “isso é coisa que se faça”, “como pode?” De diferente, porém, o teor das condenações.
Logo me lembrei da piada que corre na internet, dizendo que o bispo não poderia usar camisinha, pois a Igreja Católica proíbe preservativos, recomendando abstinência sexual. E foi exatamente a posição sectária de uma das interlocutoras que apimentou o debate “também esses padres católicos têm que obedecer a essa regra absurda do celibato, que coisa mais antinatural!”. Exaltada, a outra respondeu “ué: lei é lei e este é um preceito básico da Igreja e, além do mais, ele sabia quando assumiu o sacerdócio”. Tentado, pensei em intervir, mas o bom senso me recomendou o silêncio e internamente fui estabelecendo juízos. Também nem adiantaria trocar idéias pessoais, pois as senhoras estruturaram um campo temático em que precisavam por para fora conceitos e preconceitos. Uma condenava o padre simplesmente porque ele não podia ter feito “aquilo”; outra, além da desaprovação, achava que uma regra fora da ordem físico-humana seria atenuante e mais: no fundo, a falha não era dele enquanto homem, mas sim de uma organização religiosa que, apesar de assumir como sua, deveria mudar. Veladamente, a anulação do corpo como espaço da individualidade era posta de maneira tosca, mas incontestável. Dizendo de outra forma, o que se apresentava era o sentido corporativo da Igreja Católica sobrepondo-se à condição biológica individual.
Mentalmente, participava da contenda e lembrei-me do tema que ronda a CNBB atualmente: a questão do celibato clerical. Nada mais oportuno. Estamos exaustos de acompanhar casos de “irregularidades” no seio da Igreja Católica. Os “excessos” fazem escândalos ganharem foros de absurdo. O número de padres pedófilos ou pais de família chega a alarmar. Há extremos, como na arquidiocese de Boston, nos Estados Unidos, onde as multas por reparação chegam aos milhares de dólares, mas também registram-se casos como o do padre surpreendido na praia em abraços com jovem paroquianas. É verdade que há muitos sacerdotes devotos, santos mesmo, mas isso apenas reforça a pressuposição de que deve haver liberdade de escolha.
Em diferentes projetos, acompanhei histórias envolvendo padres e, em algumas, cheguei a constatar dramas fecundos que poderiam ser tratados com mais humanidade pelas instituições. Pena que a igreja tenha vergonha de citar o número de padres que contraíram aids. Lamentável que enredos de sacerdotes que entram em depressão ou aderem ao alcoolismo não sejam revelados e nem relacionados à solidão conventual. Caso essas situações fossem expostas, certamente, poderíamos argumentar de maneira mais contundente sobre situações que não merecem mais ficar na base do “acho X não acho”. Também o sentido real da palavra Igreja poderia ser levado a sério.
Enquanto organizava minhas idéias, as duas senhoras digladiavam-se, tecendo considerações que acabavam por extremar opiniões que começaram afinadas. Aos poucos, não era mais sobre o senhor Lugo que ambas falavam e sim a respeito da orientação da Igreja Católica como um todo. Nesse imbróglio, aquela mais legalista soltou uma explicação alarmante “quem não quiser se manter casto, não faça os votos” e a outra respondeu com uma pérola digna da riqueza do Vaticano “e há outra saída para as vocações?”. Foi nessa hora que resolvi que a reprodução desse diálogo valeria uma crônica. Mas, como qualquer texto, este não pode ser inocente e simplesmente a reprodução de uma circunstância fortuita. Não. Gostaria de convocar todos, católicos ou não, a uma resposta: afinal, a Igreja deve mudar o preceito que proíbe padres de se casarem? Sei que o terreno é pantanoso, mais ainda quando levamos em conta que a questão tem outro lado: e as freiras? Ai, ai, ai, nem quero pensar na confusão que seria se o problema da castidade ganhasse estrada entre as feministas. Enquanto isso, vamos pensando.

(O bispo paraguaio me lembrou de sua conterrânea Perla, que fez muito sucesso no Brasil, onde escolheu residir e trabalhar.)

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