Hoje o professor Sebe ataca de comentarista de filme de ficção científica. Ele viu Splice – A Nova Espécie e nos conta suas impressões.
SPLICE – A NOVA ESPÉCIE: um filme e muitas perplexidades.
José Carlos Sebe Bom Meihy
para Elson Alves
Todos sabem que gosto muito de cinema. A sala escura, como insinuou Baudrillard, é uma espécie de reinvenção do ventre materno e funciona como espaço de suspensão da ordem rotineira. Nele nos acomodamos, esquecemos fainas e desdéns da rotina e deixando acontecer enredos plurais. A possibilidade de “no escurinho” poder viver outras histórias, sondar mundos diversos do nosso, evoca catarse e libera o sempre reprimido direito ao ócio. Concordo com o chamado tolo: cinema, a maior diversão. E tão a sério levo esse suposto que prefiro comédias românticas, com fins previsíveis e promessas de encontros imorredouros. Mas, sei que mesmo como simulacro – outra vez Baudrillard – nem tudo, mesmo no cinema, é só happy end. Foi assim que me aventurei em outro gênero, numa rara investida para filmes indicados como “imperdíveis”, porque mestres de suspenses.
Confesso que me foi necessário tempo para proceder leitura própria de Splice, do canadense diretor Vincenzo Natali, com interpretações excelentes de Adrien Brondy e Sarah Polley. O filme de 2009, com duração de 104 minutos, investe em uma história audaciosa: a experiência de dois cientistas jovens, homem e mulher, funcionários bem sucedidos de uma empresa farmacêutica, metidos em aventura de engenharia genética: criar um ser novo. Atentos a gerar alguma variação de vida, ambos arrojam misturar genes humanos e animais extrapolando compromissos empresariais. Nessa alucinada busca de inovações, o casal injeta DNA humano em um protótipo gerando uma criança deformada, algo monstruosa, mas que adulta se transforma em belíssima, sedutora e insaciável mulher. Tudo se desenrola em clima de mistério, numa situação tensa e progressiva, ambientada por trilha alucinante e cenas rápidas. Os diálogos se sucedem numa velocidade tão vertiginosa que não sobra espaço para reflexões. No lugar, o medo rege o comportamento da audiência e o bom resultado disso justifica o premio de melhores efeitos especiais no Festival de Cinema da Catalunha em 2009.
Na tela, as cores conduzidas em leve azul e com muitos flashes, vão mostrando a surpreendente criatura, que esconde na beleza seu lado mortífero e fatal. Dren, o produto – nome derivado do anagrama de nerd – permite supor certa hereditariedade fílmica: uma adaptação pós-moderna de “Frankenstein” de Mary Shelley; “O bebê de Rosemary” de Polasnky e de David Cronenberg a “A Mosca”. Juntas, essas películas se evoluem na linguagem cumulativa de um tipo de cinema que cria ao longo dos tempos uma lógica que mistura medo e ficção científica. Bizarro pelo exagero, grotesco pelo resultado, são expressões dessa linhagem de filmes que repontam sempre modernizados no mercado enredando público crescente e fiel. Dren, no caso de Splice, tem um ciclo evolutivo de vida acelerado e a mescla de valores humanos e animais convidam o casal gerador a buscar um fim possível para o experimento que foge de qualquer controle. A cena final é reveladora do lado inovador da proposta que desafia continuidades em outros filmes do gênero.
Foi mecânico ver que o enredo dispensa esperadas discussões sobre ética, direitos de criação na lógica teórica dos vínculos entre a ciência e novas formas de vida. Nada de moral judaico-cristã. Tudo é prático, pragmático, experimental na direção da infinitude humana. Desprezando desde o início a possibilidade de final feliz, o que se tem é o mistério derivado da curiosidade liberada para superar todos os limites em nome da imitação criacionista divina. O filme caminha explorando uma sexualização pervertida, ousada, que mescla humor negro com riscos, apontando para visões negativas do ser humano “evoluído”. Há algo de terrível nisso. A crença de que a evolução humana é inerente à passagem do tempo permite pensar que a transgressão sexual torna-se campo de prova onde o prazer é substituído pela ambição. Não há paixão, há sexo. Não há continuidade ou perpetuação da espécie, há destruição. O surpreendente do enredo é que o filme, filosoficamente, propõe um retorno ao comportamento não inovador e uma desaceleração do progresso da ciência que jamais será perfeita. Isso, contudo, deixa um laivo de tristeza ao pensar a castração da boa curiosidade científica. A indicação da monstruosidade como único destino reponta como castigo de ousadias que não devem ser testadas.
Não saberia dizer se o filme é mesmo uma ficção científica ou se não caberia melhor no rótulo de terror. Em verdade, qualquer classificação não cabe em juízos críticos apurados. Interessa perceber que o intuito da confusão entre simulacro, realidade e progresso serve para a retomada de Baudrillard que insiste em mostrar a inviabilidade de retrato da sociedade conformada e assim se explicaria a ficção científica, o risco e o medo.
SPLICE – A NOVA ESPÉCIE: um filme e muitas perplexidades.
José Carlos Sebe Bom Meihy
para Elson Alves
Todos sabem que gosto muito de cinema. A sala escura, como insinuou Baudrillard, é uma espécie de reinvenção do ventre materno e funciona como espaço de suspensão da ordem rotineira. Nele nos acomodamos, esquecemos fainas e desdéns da rotina e deixando acontecer enredos plurais. A possibilidade de “no escurinho” poder viver outras histórias, sondar mundos diversos do nosso, evoca catarse e libera o sempre reprimido direito ao ócio. Concordo com o chamado tolo: cinema, a maior diversão. E tão a sério levo esse suposto que prefiro comédias românticas, com fins previsíveis e promessas de encontros imorredouros. Mas, sei que mesmo como simulacro – outra vez Baudrillard – nem tudo, mesmo no cinema, é só happy end. Foi assim que me aventurei em outro gênero, numa rara investida para filmes indicados como “imperdíveis”, porque mestres de suspenses.
Confesso que me foi necessário tempo para proceder leitura própria de Splice, do canadense diretor Vincenzo Natali, com interpretações excelentes de Adrien Brondy e Sarah Polley. O filme de 2009, com duração de 104 minutos, investe em uma história audaciosa: a experiência de dois cientistas jovens, homem e mulher, funcionários bem sucedidos de uma empresa farmacêutica, metidos em aventura de engenharia genética: criar um ser novo. Atentos a gerar alguma variação de vida, ambos arrojam misturar genes humanos e animais extrapolando compromissos empresariais. Nessa alucinada busca de inovações, o casal injeta DNA humano em um protótipo gerando uma criança deformada, algo monstruosa, mas que adulta se transforma em belíssima, sedutora e insaciável mulher. Tudo se desenrola em clima de mistério, numa situação tensa e progressiva, ambientada por trilha alucinante e cenas rápidas. Os diálogos se sucedem numa velocidade tão vertiginosa que não sobra espaço para reflexões. No lugar, o medo rege o comportamento da audiência e o bom resultado disso justifica o premio de melhores efeitos especiais no Festival de Cinema da Catalunha em 2009.
Na tela, as cores conduzidas em leve azul e com muitos flashes, vão mostrando a surpreendente criatura, que esconde na beleza seu lado mortífero e fatal. Dren, o produto – nome derivado do anagrama de nerd – permite supor certa hereditariedade fílmica: uma adaptação pós-moderna de “Frankenstein” de Mary Shelley; “O bebê de Rosemary” de Polasnky e de David Cronenberg a “A Mosca”. Juntas, essas películas se evoluem na linguagem cumulativa de um tipo de cinema que cria ao longo dos tempos uma lógica que mistura medo e ficção científica. Bizarro pelo exagero, grotesco pelo resultado, são expressões dessa linhagem de filmes que repontam sempre modernizados no mercado enredando público crescente e fiel. Dren, no caso de Splice, tem um ciclo evolutivo de vida acelerado e a mescla de valores humanos e animais convidam o casal gerador a buscar um fim possível para o experimento que foge de qualquer controle. A cena final é reveladora do lado inovador da proposta que desafia continuidades em outros filmes do gênero.
Foi mecânico ver que o enredo dispensa esperadas discussões sobre ética, direitos de criação na lógica teórica dos vínculos entre a ciência e novas formas de vida. Nada de moral judaico-cristã. Tudo é prático, pragmático, experimental na direção da infinitude humana. Desprezando desde o início a possibilidade de final feliz, o que se tem é o mistério derivado da curiosidade liberada para superar todos os limites em nome da imitação criacionista divina. O filme caminha explorando uma sexualização pervertida, ousada, que mescla humor negro com riscos, apontando para visões negativas do ser humano “evoluído”. Há algo de terrível nisso. A crença de que a evolução humana é inerente à passagem do tempo permite pensar que a transgressão sexual torna-se campo de prova onde o prazer é substituído pela ambição. Não há paixão, há sexo. Não há continuidade ou perpetuação da espécie, há destruição. O surpreendente do enredo é que o filme, filosoficamente, propõe um retorno ao comportamento não inovador e uma desaceleração do progresso da ciência que jamais será perfeita. Isso, contudo, deixa um laivo de tristeza ao pensar a castração da boa curiosidade científica. A indicação da monstruosidade como único destino reponta como castigo de ousadias que não devem ser testadas.
Não saberia dizer se o filme é mesmo uma ficção científica ou se não caberia melhor no rótulo de terror. Em verdade, qualquer classificação não cabe em juízos críticos apurados. Interessa perceber que o intuito da confusão entre simulacro, realidade e progresso serve para a retomada de Baudrillard que insiste em mostrar a inviabilidade de retrato da sociedade conformada e assim se explicaria a ficção científica, o risco e o medo.
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