Nesta quarta, o Professor Sebe comenta sobre o livro O Jeitinho Americano: 99 Crônicas (2010), escrito por seu ex-aluno Mathew Shirts, norte-americano que escreve crônicas para o jornal Estado de São Paulo. Pontuada por lembranças de convívio fraterno com o amigo da família, o texto sebiano nos leva também à Roma Antiga, para cogitar sobre um dito popular.
QUEM PARIU MATEUS QUE O EMBALE...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Reza a lenda que na velha Roma, um garotinho pobre, bastardo, foi abandonado na porta de uma família proba, com o nome escrito num papelzinho: Mateus. Essa família rejeitou-o e passou para outra e assim sucessivamente. Ninguém queria a criança e de uma passagem para outra era repetido “quem pariu Mateus que o embale”. Até hoje não se sabe se ele existiu mesmo, embora alguns autores confirmem certo Mateus Camisans, orador emérito, no Senado romano. A lembrança desse tão decantado dito popular - que atravessou a Europa e por Portugal chegou ao Brasil - me veio à lembrança quando da leitura do imperdível “O jeitinho americano: 99 crônicas” de autoria de Matthew Shirts, lançado pela Realejo Editora, no mês passado.
Desde que o convite para um dos muitos lançamentos brilhou na tela do meu computador, uma nesga de recordações foi progressivamente irrompendo em provocantes saudades, ternas emoções e de mim se apossou uma coleção de imagens estimuladas por um convívio muito especial. Especialíssimo. De certa forma, abriu-se uma alegria incontrolada dentro do meu coração que envelhece professor, e, dentre tantas recordações boas, lá estava o convívio com o Matt.
Depois do abraço cúmplice na Livraria da Vila, em SP, restava ler. Programei um cerimonial: escolhi o melhor momento, roupa confortável, aninhei-me na poltrona favorita e o vinho tinto me acompanhou. E comecei a viagem que era dele como se fosse minha também. Na medida em que as páginas progrediam céleres, esforçava-me para respirar adivinhando detalhes de certos caminhos que não percorremos lado a lado. Presidia uma contradição entre o avanço da leitura e a vontade de flanar sobre um passado insistente. Sim, entendi o que Bergson quer dizer com o conceito de “memória trabalho”, senti-me arqueólogo de uma das mais profundas experiências que vivi em minha larga docência e via um produto agora triunfante.
Acabei perdido em divagações quando me derreti na última página. Explico-me: então meu estudante quando eu era diretor do programa de alunos estrangeiros na Universidade de São Paulo, Mateus conviveu intensamente comigo, com minha mulher e filhos. Eram plurais os fins de semana em Taubaté e nossas conversas intermináveis trançavam tantos temas que nos permitiam vislumbrar um Brasil mais criativo do que temos afinal. Não seria errado dizer que muito de minha redefinição de professor e pesquisador se deu ao lado dele. Era o tempo final da ditadura militar e os objetos de estudos impulsionavam a participação geral nos eventos do país. Confesso que me era provocante ver aqueles acontecimentos filtrados por olhos de jovens norte-americanos. E no caso do Mateus não se tratava de qualquer moço. Inquieto, inteligente, curioso, mulherengo, corintiano, o rapaz se meteu em muitas cavernas da cultura brasileira e sempre com humor picante traduzia isso em trabalhos acadêmicos. Leitor voraz, juntos retraçamos parte razoável da produção literária e crítica brasileira. Lembro-me emocionado das leituras que fez de Lobato, Euclides, Gilberto Freyre e Vasconcelos e tantos outros. Será que ele ainda guarda os volumes elegantes da obra completa de Machado que lhe dei, pergunto-me? Houve, pois, muito mais trocas além de aluno e professor, nos tornamos amigos, confidentes, aliados. Quando ele terminou a fase de estudos na USP, num gesto confiante, indiquei-o para me substituir quando partia para Stanford por um ano como professor visitante. Essa, aliás, não foi a única indicação que fiz. Lutei para que ele recebesse bolsas para estudos de pós-graduação no posto mais adequado para dimensionar sua capacidade. E ele foi longe ao lado do saudoso professor Morse. Mais: tenho orgulho enorme de ser o introdutor dele no ciclo de amigos como o Antonio Pedro Tota, então doutorando sob minha orientação na USP, e ao interessantíssimo Carlos Bakota, elo permanente entre pessoas e irreverências.
Busquei Taubaté nas crônicas. Encontrei apenas uma passagem onde ele, de leve, menciona a participação numa ala da Escola de Samba da Estiva. Só. Pensei com meus lenços no porque desse apagamento e, perdido na ausência para mim inexplicável, me recordei do dito popular. Talvez eu o tivesse passado para frente, ou, é possível que ele, traquinas, tenha fugido de nossa casa e procurado abrigo em outras. Figurando sempre nas colunas do Estadão, este Mateus desmente a inexistência do tal Mateus Camisans e como seria de se esperar desafia a fatalidade e mantém-se instigando. Será que o Mateus Camisans da Roma antiga é mesmo o Matthew Shirts? Entendo agora a fatalidade do nome e passo a acreditar que existe reencarnação. Afora isso, sugiro que todos leiam o magnífico livro e se alguém souber quem embalou Mateus...
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