Roberto Rillo Bíscaro
Em 21 de abril de 2009, comentei sobre a soberba minissérie Bleak House, adaptação do livro homônimo do inglês Charles Dickens, o escritor vitoriano mais lido ainda hoje. Demorou, mas finalmente enfrentei as 800 páginas de letra miúda e pouco espaço entre palavras e parágrafos.
Publicado entre 1852-3, o romance ironiza o arcaico, custoso, prolixo, ineficiente e labiríntico sistema judicial da Inglaterra do século XIX, com seus litígios que duravam gerações e custavam mais do que as somas envolvidas nos processos. Dickens travara longa e infrutífera batalha jurídica com editores que lançaram edições piratas de seu famoso A Christmas Carol, fato inspirador do mordaz ataque desferido em Bleak House.
A trama central gravita em torno do caso Jarndyce versus Jarndyce, envolvendo a batalha judicial entre herdeiros, que, há gerações querem provar qual dos diversos testamentos escritos por Tom Jarndyce deve ser aplicado. A querela na casa dos Jarndyce levou vários membros do clã à destruição.
A narrativa inicia numa Londres imersa em brumas, apresentando Chancery Lane, a região do tribunal onde vidas são gastas esperando decisões dos juízes. A visibilidade quase nula resultante do fog é magistralmente metaforizada por Dickens para representar a inexatidão dos caminhos da lei. A corrosiva sátira dickensiana aquilata o absurdo e o caos representados pela magistratura britânica, incrustando-os em todos os aspectos formais de Bleak House.
Um exemplo: há dois narradores, um usa o tempo presente, o outro, o passado. É como se a onisciência não tivesse condições de existir e apenas o tradicional narrador único não desse conta de deslindar o novelo absurdo de acontecimentos, relações e peripécias. O resultado é uma narrativa complexa e por vezes confusa, como o litígio Jarndyce versus Jarndyce.
Uma das narradoras é Esther Summerson, que vai para a casa de John Jarndyce servir como governanta e dama de companhia da jovem Ada, órfã devido à tragédia familiar da luta pelo dinheiro. Esther cumpre, até certo ponto, o papel de elemento de coesão entre algumas subtramas da história. O verão do sobrenome da bastarda acolhida por John Jarndyce indica que a personagem é a representação da sanidade, da luz e do calor, em meio a uma galeria de gente doida e/ou murcha pela borrasca invernal do mundo das disputas jurídicas. Mas, até essa metáfora funciona até certo ponto. Miss Summerson também tem seu quinhão de loucura, na sua necessidade quase patológica de agradar e de ser amada, para compensar uma infância inóspita e sem amor.
A caricatura se define pelo exagero na representação de um traço físico que salta aos olhos. As personagens em Bleak House são caricatas; todas têm algum traço físico, psicológico ou lingüístico exagerado. Alguma mania ou excentricidade elevada ao cubo, criando uma galeria que faz rir, mas que traz consigo a mordacidade e a fúria do ataque do escritor.
Os telenovelistas contemporâneos empalidecem quando comparados com as descrições da pobreza rural e urbana pintadas em cores chocantes pelo ancestral inglês. Tem bebê morto no colo da mãe, criança morrendo de fome e maus tratos, o fedor e a insalubridade de Tom All Alone’s, que parecem saltar do livro para empestear as narinas leitoras. À época da publicação de Bleak House a Inglaterra era a maior potência mundial; passara a década de 1840 implementando salto gigantesco na malha ferroviária e dominava meio mundo. Mesmo assim, a referida década é conhecida como The Hungry Forties (Os Famintos Anos 40).
Dickens sabia que a pobreza desesperadora em que vivia boa parte da população britânica refletia em todos os extratos sociais. A miséria não é um problema apenas dos miseráveis, afinal, se vivemos em sociedade, tudo está interligado. E como o autor mostra isso no romance! O esquálido Jo e sua quase total exclusão afetam de certo modo a gélida e poderosa Lady Deadlock, constituindo-se em tijolo construtor de sua queda. Mais graficamente, a febre contagiosa do menor abandonado, torna-se a varíola que desfigura o rosto de Esther Summerson, “protegida” da pobreza pela afluência de Bleak House. Em que pese o tão criticado sentimentalismo dickensiano, o escritor dá boas bofetadas na fuça dos que pensam que os problemas do subúrbio, são problemas do subúrbio.
Apesar do título, do tema e das cenas soturnas, que não se engane o leitor: Bleak House é folhetinesca até os ossos, mesmo os osteoporizados pela fraqueza, como os do pequeno Jo. Dickens ganhava a vida vendendo escrita, por isso sabia que devia agradar ao público. Era mestre em manipular, divertir e cativar.
Cada personagem tem marcada peculiaridade lingüística para torná-los mais facilmente identificáveis, especialmente através de bordões. Confesso que estou louco de vontade de conversar em inglês apenas pra poder botar um “not to put too fine a point upon it”, no meio d’alguma frase. Sou pouco afeito a bordões, mas adorei as aliterações desse!
Deixar o leitor em suspense, naquele clima de quero mais (preciso mais, melhor dizendo!) é outro traço de qualquer folhetinista que se preze. E Dickens foi um gigante no ramo. Quando a heroína Esther adoece, ele encerra o capítulo com uma dramática revelação da moça, febril, na cama “Estou cega!” Seguem-se 3 torturantes capítulos com o outro narrador. Só então, Esther retoma a história e nos conta o que acontece.
Certa vez, vi uma lista do tipo “10 razões porque odeio as novelas de Glória Perez”. Uma delas era o uso de novidades científicas como barrigas de aluguel e clonagem. Não discuto o direito de se odiar as novelas da autora, mas o compilador da lista então, odeia não Glória, mas um dos elementos primordiais do bom folhetim, a saber, o uso de elementos mirabolantes, de golpes literários pra fazer salivar a boca do leitor, sacudi-lo do dia a dia previsível do trabalho e da “normalidade” e, claro, tornar a narrativa suculenta, ágil e conectada com seu tempo. Dickens foi um dos primeiros autores a descrever o solo rasgado pelas ferrovias e as cidades esfumaçadas da Revolução Industrial. Nisso, consiste uma das grandes novidades temático-formais de sua obra. Em Bleak House ele vai além e nos brinda com uma morte por combustão espontânea! O assunto era tão novidade que o autor tem que embasar o fato numa nota introdutória.
Também como bom folhetim, o livro é meritocrático. Termina com a punição dos devedores e daqueles que caíram em tentação enquanto presenteia com o inevitável final feliz, os puros de espírito e os desinteressados pelos bens materiais. Claro que essa reordenação artificial do mundo é um dos pontos facilmente criticáveis da ideologia produtora do folhetim, porque não efetua mudança na situação social causadora de todos os problemas da narrativa, sendo assim uma solução postiça. Mas, isso faz parte de seu conjunto de convenções.
Karl Marx afirmou que Dickens e outros novelistas vitorianos lhe mostraram mais da situação do capitalismo na época do que políticos, filósofos e moralistas reunidos. Bleak House é prova irrefutável disso. Por baixo dos truques folhetinescos e do humor - que beira o absurdo, às vezes – corre um rio turbulento e desesperado. Sua correnteza arrasta destroços de vidas, advogados, burocracia, usinas de ferro, a nobreza decadente, a usura, o burburinho da cidade, ruas elegantes, cortiços, o antecedente do atual culto às celebridades, a droga como fuga do horror. Enfim, Bleak House é uma tour de force, digna do maior escritor vitoriano. 150 anos depois, Charles Dickens ainda tem muitas lições a nos ensinar
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