Outro Carnaval chega ao fim e a vida cotidiana volta a falar mais alto. Reinado de Momo só no ano que vem. Carná é época de bagunça e de testar limites. Mas, e se a festa se tornasse politicamente correta, certinha? Teria graça? Faria sentido? Veja o que opina nosso historiador-cronista/cronista-historiador.
REI MOMO POLITICAMENTE CORRETO...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Pensemos um pouco: qual seria a função do carnaval no admirável mundo novo da globalização? Tudo teria que estar de acordo com as regras, arrumadas segundo procedimentos previamente estipulados? Tudo politicamente correto? Certo? Mais ou menos. Se o princípio teórico básico do carnaval é a inversão do cotidiano ou a danação provisória da conduta usual, como poderia o carnaval deixar de ser irônico, brincalhão, mordaz? Seria uma chatice interminável, podendo até virar desfile cívico, aula de bons costumes. Se fosse assim, o sabor da contradição se perderia frustrando o essencial sentido da festa. Para os gregos, o carnaval era tido como celebração de Dionísio, semideus “desarrumador” das estruturas, ao contrário de Apolo, dono da beleza e harmonia. Como que lembrando que a bagunça faz parte da vida e que é essencial para a requalificação da ordem rotineira, o carnaval se presta como catarse de um mundo organizadinho, trilhado no bom comportamento típico da moral judaico cristã.
É lógico que somos favoráveis à inclusão social de todos os segmentos, ao direito amplo dos cidadãos comuns às conquistas, às buscas iguais de oportunidades. Mas, respeitemos a tradição, os símbolos e a distância entre as práticas cotidianas de cidadania, e os emblemas estabelecidos no passado e assumidos pelo povo como recurso coletivo de julgamento. Carnaval é carnaval. Nós já sofremos muito com a censura, com regras impostas de cima para baixo, com normas disciplinadoras que atormentam nosso dia a dia. Aprendemos algo? Será que ainda resta “corrigir” o pretérito quando filtrado pela sabedoria democrática do povo que precisa opor os dramas do cotidiano admitindo utopias, ainda que passageiras? Ciclicamente, é no tempo do carnaval que sintetizamos julgamentos coletivos e os colocamos aos olhos das charadas sociais. Nada melhor que a picardia, o senso irônico, fanfarrão, para filtrar o processo vivencial. A história nos ensina que temos que entender os procedimentos de construções explicativas e não aceitar situações manipuláveis. E é o carnaval que se abre como tempo para esses juízos. Homens e mulheres podem “mudar” de sexo, escravos ser reis, anjos mostrar seu lado sacana numa espécie de licença do desejo. Tudo cabe nessas tradições consagradas no imaginário popular. Mas há limites? A crítica se faz importante exatamente por mostrar a resistência da ordem crivando o senso humorístico. É aí que reside o fundamental dilema do carnaval moderno: ser apolíneo ou dionisíaco? As duas tendências se apresentam. Vemos que o carnaval das escolas de samba – ainda que com várias exceções – se mostra na linhagem dos concursos, submisso às regras e decisões hierarquizantes. Na mão contrária, os blocos de rua se multiplicam, ganham dimensões pândegas, quase grotescas ou escatológicas. E viva eles. Muitos, a começar pelos nomes denunciam a fome democrática – gosto muito do nosso “Vai quem quer” e não resisto destacar alguns hilários como “Que Merda é esta” ou “Sovaco do Cristo”. Questiona-se então o papel do politicamente correto no tríduo momístico. A lógica seqüente dos dias do ano demanda pedagogia, mas sem as contradições carnavalescas ela será sempre imposta. O carnaval é a festa da democracia e isso explica o apelo coletivo produzido. Há enorme abismo entre o padrão cidadão pretendido para o dia a dia e a forma irônica de acatar o imaginário grupal. Como as coisas andam, tudo é feito na base da cominação de moldes e o constrangimento muitas vezes ganha foros de lei e afeta a possibilidade de mudar. Sim, somos, por diversas razões, obrigados a aceitar algumas variações que, cá entre nós, não passam de bobagens.
Imaginemos um Rei Momo Negro? E por que devemos ponderar que ele deve ser magrinho para merecer consideração? Daqui a pouco, o “rei da festa” terá que ser um afro-descendente, jovenzinho, sarado. Por que teríamos que aceitá-lo preto, magro, adolescente ou pelado? Assim como não consigo imaginar Nossa Senhora Aparecida branca, pergunto-me por que deveria supô-la de “outra cor”? Que fique claro que sou favorável à promoção dos negros e dos índios, defendo os deficientes em todos os foros e níveis e - me permitam dizer - minha biografia me autoriza esta afirmação. Minha posição frente aos símbolos do carnaval, popularmente aceitos e assumidos é a favor do inverso, pela valorização da cultura negra no que ela tem de fundamental para o carnaval. A chamada “festa da raça” ou o fato de carinhosamente se delegar ao negro que “a força do samba está no sangue” pode ser ofensivo? O que vamos fazer com a tradição das mulatas e dos passistas negros? Em suma, advogo o recrudescimento da crítica e aposto na afirmação do carnaval como festa libertária por excelência. Na danação da norma, pois que se fortaleça o politicamente correto exatamente pelo incorreto permitido no carnaval.
REI MOMO POLITICAMENTE CORRETO...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Pensemos um pouco: qual seria a função do carnaval no admirável mundo novo da globalização? Tudo teria que estar de acordo com as regras, arrumadas segundo procedimentos previamente estipulados? Tudo politicamente correto? Certo? Mais ou menos. Se o princípio teórico básico do carnaval é a inversão do cotidiano ou a danação provisória da conduta usual, como poderia o carnaval deixar de ser irônico, brincalhão, mordaz? Seria uma chatice interminável, podendo até virar desfile cívico, aula de bons costumes. Se fosse assim, o sabor da contradição se perderia frustrando o essencial sentido da festa. Para os gregos, o carnaval era tido como celebração de Dionísio, semideus “desarrumador” das estruturas, ao contrário de Apolo, dono da beleza e harmonia. Como que lembrando que a bagunça faz parte da vida e que é essencial para a requalificação da ordem rotineira, o carnaval se presta como catarse de um mundo organizadinho, trilhado no bom comportamento típico da moral judaico cristã.
É lógico que somos favoráveis à inclusão social de todos os segmentos, ao direito amplo dos cidadãos comuns às conquistas, às buscas iguais de oportunidades. Mas, respeitemos a tradição, os símbolos e a distância entre as práticas cotidianas de cidadania, e os emblemas estabelecidos no passado e assumidos pelo povo como recurso coletivo de julgamento. Carnaval é carnaval. Nós já sofremos muito com a censura, com regras impostas de cima para baixo, com normas disciplinadoras que atormentam nosso dia a dia. Aprendemos algo? Será que ainda resta “corrigir” o pretérito quando filtrado pela sabedoria democrática do povo que precisa opor os dramas do cotidiano admitindo utopias, ainda que passageiras? Ciclicamente, é no tempo do carnaval que sintetizamos julgamentos coletivos e os colocamos aos olhos das charadas sociais. Nada melhor que a picardia, o senso irônico, fanfarrão, para filtrar o processo vivencial. A história nos ensina que temos que entender os procedimentos de construções explicativas e não aceitar situações manipuláveis. E é o carnaval que se abre como tempo para esses juízos. Homens e mulheres podem “mudar” de sexo, escravos ser reis, anjos mostrar seu lado sacana numa espécie de licença do desejo. Tudo cabe nessas tradições consagradas no imaginário popular. Mas há limites? A crítica se faz importante exatamente por mostrar a resistência da ordem crivando o senso humorístico. É aí que reside o fundamental dilema do carnaval moderno: ser apolíneo ou dionisíaco? As duas tendências se apresentam. Vemos que o carnaval das escolas de samba – ainda que com várias exceções – se mostra na linhagem dos concursos, submisso às regras e decisões hierarquizantes. Na mão contrária, os blocos de rua se multiplicam, ganham dimensões pândegas, quase grotescas ou escatológicas. E viva eles. Muitos, a começar pelos nomes denunciam a fome democrática – gosto muito do nosso “Vai quem quer” e não resisto destacar alguns hilários como “Que Merda é esta” ou “Sovaco do Cristo”. Questiona-se então o papel do politicamente correto no tríduo momístico. A lógica seqüente dos dias do ano demanda pedagogia, mas sem as contradições carnavalescas ela será sempre imposta. O carnaval é a festa da democracia e isso explica o apelo coletivo produzido. Há enorme abismo entre o padrão cidadão pretendido para o dia a dia e a forma irônica de acatar o imaginário grupal. Como as coisas andam, tudo é feito na base da cominação de moldes e o constrangimento muitas vezes ganha foros de lei e afeta a possibilidade de mudar. Sim, somos, por diversas razões, obrigados a aceitar algumas variações que, cá entre nós, não passam de bobagens.
Imaginemos um Rei Momo Negro? E por que devemos ponderar que ele deve ser magrinho para merecer consideração? Daqui a pouco, o “rei da festa” terá que ser um afro-descendente, jovenzinho, sarado. Por que teríamos que aceitá-lo preto, magro, adolescente ou pelado? Assim como não consigo imaginar Nossa Senhora Aparecida branca, pergunto-me por que deveria supô-la de “outra cor”? Que fique claro que sou favorável à promoção dos negros e dos índios, defendo os deficientes em todos os foros e níveis e - me permitam dizer - minha biografia me autoriza esta afirmação. Minha posição frente aos símbolos do carnaval, popularmente aceitos e assumidos é a favor do inverso, pela valorização da cultura negra no que ela tem de fundamental para o carnaval. A chamada “festa da raça” ou o fato de carinhosamente se delegar ao negro que “a força do samba está no sangue” pode ser ofensivo? O que vamos fazer com a tradição das mulatas e dos passistas negros? Em suma, advogo o recrudescimento da crítica e aposto na afirmação do carnaval como festa libertária por excelência. Na danação da norma, pois que se fortaleça o politicamente correto exatamente pelo incorreto permitido no carnaval.
Nenhum comentário:
Postar um comentário