A Hora da Estrela
Minha viagem celulóidica pelas décadas de 1940/50 segue firme. Como a maior parte dos filmes é policial, de espionagem ou suspense, a mulherada continua apanhando muito e sempre é submissa, perversa ou cidadã de segunda classe. Nos anos 50, a filosofia era a do Father Knows Best (Papai Sabe Tudo), aquela série de TV que tinha o simpático papai Jim Anderson e sua adorável e conformada família suburbana.
Quando aparecia uma mulher mais durona ou independente era pra causar ou ter problema. Lembram do cultuado A Malvada (1950), com Bette Davis? Diferentemente do que uma conhecida atriz global afirmou a uma grande revista quando perguntada sobre suas vilãs favoritas, a malvada do título não era Davis, mas sim Anne Baxter, que vem tomar seu lugar de estrela da Broadway. A personagem de Davis, porém, larga tudo antes, pra se dedicar à maternidade e ao esposo. No fim, Baxter torna-se a rainha do pedaço, mas uma moça mais jovem aparece, dando a entender que tudo se repetirá. Lugar de mulher era em casa, no subúrbio, e não no mercado de trabalho, afinal a Guerra acabara e os homens estavam de volta no mercado.
A rival de Davis nas telas era Joan Crawford. Como Oasis x Blur, as 2 divas não se suportavam, ou, pelo menos, essa foi a imagem construída. Barraco vende revista! Conta a lenda que certa vez a filha de Crawford teria comentado sobre um mal estar da mãe, perto de Davis. Esta teria dito “espero que seja algo fatal.” Duas mulheres fortes, que quase sempre caiam em pé. Crawford praticamente construiu a carreira sobre sua personalidade marcante, sendo sempre “ela mesma” nas telas. Porém, também em 1950, Crawford estrelou uma produção cujo subtexto é o perigo de as mulheres estarem no comando. Harriet Craig é baseado na peça Craig’s Wife (1925), ganhadora do Pullitzer. Soube disso apenas depois de ver o filme e buscar informações online, mas dá bem pra perceber as raízes teatrais (ou melhor, dum tipo de teatro...) do filme, com a sala de estar como centro da representação, um elemento cênico carregado de peso simbólico (um vaso representando o casamento) e, claro, o próprio modo como o motor do drama começa a funcionar, que lembra Ibsen. Voltarei a isso mais adiante.
Antes, um “detalhe”: perceberam como o nome da peça foi alterado pra holofotar Joan Crawford? Craig’s Wife a Harriet Craig possuem cargas semânticas bem diferentes!
O enredo é assim: um engenheiro brilhante é casado há 4 anos com uma esposa perfeita, que traz a casa asseada e ordenada como um laboratório ou cenário, num clima de assepsia, tirania e gelidez. Tudo corre às mil maravilhas e o maridão não percebe ser pau mandado da esposa, que, por detrás da eficiência e brilho social, esconde uma personalidade insegura, rancorosa, manipuladora e incapaz de amar. Bem ao estilo ibseniano, o dique desses 4 anos se rompe em questão de dias e o esposo percebe a real personalidade de Harriet.
Dentro das convenções teatrais do começo de século passado, isso funcionava, mas em termos fílmicos, em 1950, é duro de engolir que um sujeito tão esperto ainda não tivesse se dado conta da mocréia que tinha em casa! Roteiro de cine é sempre tão bem explicadinho e a gente se acostuma com isso, daí o estranhamento em Harriet Craig. Difícil não sentir aquele ar de coisa “forçada”.
O filme, porém, funciona que é uma maravilha! E por um motivo simples: a estrela Joan Crawford. Sim, Crawford era estrela e o filme foi feito como veículo pra ela brilhar. As sobrancelhas eriçadas, garras afiadas, olhares penetrantes, caras e bocas e o exagero na interpretação e no vestuário, tudo contribui pra passarmos por cima da inverossimilhança da situação e desfrutarmos de hora e meia de pura diversão, odiando Harriet, simpatizando com Craig, mas sempre hipnotizados pelo carisma de Crawford, que na vida real, espancava a filha adotiva com cabides enquanto dizia amá-la! Isso, de acordo com a escandalosa autobiografia escrita por Christina Crawford, que virou filme (o petardo cult-trash Mommie Dearest, de 1981, com Faye Dunaway).
A estrela brilha tanto que periga até esquecermos o que estava em jogo por detrás desse melodrama na estréia da machista década de 50: a demonização da mulher de atitude (por isso o exagero do filme) e a afirmação de que quem deve mandar na casa é o homem, caso contrário, a vida se tornaria um inferno.
Fiquei curioso pra ler a peça que originou o filme. Este termina com Harriet subindo a escadaria da casa vestindo camisola enorme. Fico imaginando se no teatro, a obra terminava com Craig batendo a porta de casa. Seria uma inversão interessante da fundamental Casa de Bonecas, de Ibsen, onde Nora bate a porta na fuça de Torvald pra se emancipar.
Minha viagem celulóidica pelas décadas de 1940/50 segue firme. Como a maior parte dos filmes é policial, de espionagem ou suspense, a mulherada continua apanhando muito e sempre é submissa, perversa ou cidadã de segunda classe. Nos anos 50, a filosofia era a do Father Knows Best (Papai Sabe Tudo), aquela série de TV que tinha o simpático papai Jim Anderson e sua adorável e conformada família suburbana.
Quando aparecia uma mulher mais durona ou independente era pra causar ou ter problema. Lembram do cultuado A Malvada (1950), com Bette Davis? Diferentemente do que uma conhecida atriz global afirmou a uma grande revista quando perguntada sobre suas vilãs favoritas, a malvada do título não era Davis, mas sim Anne Baxter, que vem tomar seu lugar de estrela da Broadway. A personagem de Davis, porém, larga tudo antes, pra se dedicar à maternidade e ao esposo. No fim, Baxter torna-se a rainha do pedaço, mas uma moça mais jovem aparece, dando a entender que tudo se repetirá. Lugar de mulher era em casa, no subúrbio, e não no mercado de trabalho, afinal a Guerra acabara e os homens estavam de volta no mercado.
A rival de Davis nas telas era Joan Crawford. Como Oasis x Blur, as 2 divas não se suportavam, ou, pelo menos, essa foi a imagem construída. Barraco vende revista! Conta a lenda que certa vez a filha de Crawford teria comentado sobre um mal estar da mãe, perto de Davis. Esta teria dito “espero que seja algo fatal.” Duas mulheres fortes, que quase sempre caiam em pé. Crawford praticamente construiu a carreira sobre sua personalidade marcante, sendo sempre “ela mesma” nas telas. Porém, também em 1950, Crawford estrelou uma produção cujo subtexto é o perigo de as mulheres estarem no comando. Harriet Craig é baseado na peça Craig’s Wife (1925), ganhadora do Pullitzer. Soube disso apenas depois de ver o filme e buscar informações online, mas dá bem pra perceber as raízes teatrais (ou melhor, dum tipo de teatro...) do filme, com a sala de estar como centro da representação, um elemento cênico carregado de peso simbólico (um vaso representando o casamento) e, claro, o próprio modo como o motor do drama começa a funcionar, que lembra Ibsen. Voltarei a isso mais adiante.
Antes, um “detalhe”: perceberam como o nome da peça foi alterado pra holofotar Joan Crawford? Craig’s Wife a Harriet Craig possuem cargas semânticas bem diferentes!
O enredo é assim: um engenheiro brilhante é casado há 4 anos com uma esposa perfeita, que traz a casa asseada e ordenada como um laboratório ou cenário, num clima de assepsia, tirania e gelidez. Tudo corre às mil maravilhas e o maridão não percebe ser pau mandado da esposa, que, por detrás da eficiência e brilho social, esconde uma personalidade insegura, rancorosa, manipuladora e incapaz de amar. Bem ao estilo ibseniano, o dique desses 4 anos se rompe em questão de dias e o esposo percebe a real personalidade de Harriet.
Dentro das convenções teatrais do começo de século passado, isso funcionava, mas em termos fílmicos, em 1950, é duro de engolir que um sujeito tão esperto ainda não tivesse se dado conta da mocréia que tinha em casa! Roteiro de cine é sempre tão bem explicadinho e a gente se acostuma com isso, daí o estranhamento em Harriet Craig. Difícil não sentir aquele ar de coisa “forçada”.
O filme, porém, funciona que é uma maravilha! E por um motivo simples: a estrela Joan Crawford. Sim, Crawford era estrela e o filme foi feito como veículo pra ela brilhar. As sobrancelhas eriçadas, garras afiadas, olhares penetrantes, caras e bocas e o exagero na interpretação e no vestuário, tudo contribui pra passarmos por cima da inverossimilhança da situação e desfrutarmos de hora e meia de pura diversão, odiando Harriet, simpatizando com Craig, mas sempre hipnotizados pelo carisma de Crawford, que na vida real, espancava a filha adotiva com cabides enquanto dizia amá-la! Isso, de acordo com a escandalosa autobiografia escrita por Christina Crawford, que virou filme (o petardo cult-trash Mommie Dearest, de 1981, com Faye Dunaway).
A estrela brilha tanto que periga até esquecermos o que estava em jogo por detrás desse melodrama na estréia da machista década de 50: a demonização da mulher de atitude (por isso o exagero do filme) e a afirmação de que quem deve mandar na casa é o homem, caso contrário, a vida se tornaria um inferno.
Fiquei curioso pra ler a peça que originou o filme. Este termina com Harriet subindo a escadaria da casa vestindo camisola enorme. Fico imaginando se no teatro, a obra terminava com Craig batendo a porta de casa. Seria uma inversão interessante da fundamental Casa de Bonecas, de Ibsen, onde Nora bate a porta na fuça de Torvald pra se emancipar.
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