Creio que todos os filmes iranianos resenhados no blog envolvem crianças pobres buscando algo ou são narrativas em estilo quase documental. Longe de se resumir a isso, o cinema daquele país ficou famoso mundialmente devido a essas facetas. Ontem, assisti a uma produção que foge desse estilo, apresentando um Irã urbano, com interfones, portões eletrônicos e de classe média, mas que não deixa de lado as tradições e não se esquece do lado pobre de Teerã.
Chaharshanbe Suri (2006), do diretor Asghar Farhadi se passa no último dia do ano iraniano, que começa em março. O título do filme é o mesmo da tradicional festa de passagem do ano persa. Na noite de terça para a última quarta-feira do ano, as pessoas vão às ruas, onde fogueiras são acesas e fogos de artifício e bombinhas são soltados. O fogo funciona como elemento de purificação e revigoração para a palidez provocada pelo longo e frio inverno, que termina. Pulando fogueiras, as pessoas pedem a força e a quentura do fogo.
Enquanto parte da classe média de Teerã se prepara para viajar no Ano Novo, a jovem Rouhi tem que trabalhar. Moradora da periferia, a menina tem que limpar casas para ajudar nas despesas do casamento, que se aproxima. Uma agência a envia para faxinar o apartamento do casal Mojdeh e Morteza. O dia passado em companhia do casal de classe média, prestes a viajar para Dubai, funcionará como uma aula de educação sentimental para a – até então – ingênua jovem. Ao retornar para seu apaixonado noivo, Rouhi terá a noção de que o matrimônio não é um mar de rosas e terá aprendido algumas das sutilezas do complicado convívio a dois e da relação com vizinhos e parentes.
Mojdeh, a esposa, suspeita que Morteza tem um caso extraconjugal com Simim, que fora abandonada pelo marido e abrira um salão de beleza no apartamento vizinho ao casal protagonista. Durante parte da narrativa fica a dúvida: afinal, Mojdeh é uma neurótica que vive espionando o marido, escutando conversas e imaginado coisas? É uma mãe relapsa que não busca o filho na escola apenas pra ir vigiar o esposo na porta do trabalho? Após mais de uma hora de filme, uma reviravolta no roteiro lançará luzes novas sobre todas as personagens. É quando sabemos se o adultério ocorre ou não.
O roteiro joga o foco mais nas reações das personagens do que em ações mirabolantes. A atuação de Hedye Tehrani como a atormentada esposa é soberba. A edição e os enquadramentos de câmera são crispados como a situação emocional das personagens. A ambientação é magistral: a bagunça e o excesso de objetos do apartamento, o barulho e o movimento de Teerã, tudo funciona como metáfora e intensificador da agonia doméstica das personagens de classe média e da perplexidade de Rouhi, que vira adulta em um dia.
À noite, Morteza dirige Rouhi para sua distante casa. Pelos vidros do carro vemos o festival de fogo por todo canto. Nessa cena, o ritual deixa de significar o início de um novo ano de esperanças e assume feições de guerra, a mesma batalha vivida pelas personagens. O olhar entre assustado e fascinado da jovem doméstica confirma essa metaforização.
Chaharshanbe Suri nos permite espiar um mundo tão desconhecido e mal-interpretado no ocidente, graças à demonização do Irã via Tio Sam e aliados. Nos apresenta pequenas subversões femininas cotidianas, sob os xadores persas. O pungente drama urbano de Asghar Farhadi indica que por detrás das diferenças culturais ou por debaixo de véus as pessoas no Irã compartilham conosco muitas angústias, incertezas e, sobretudo, humanidade.
(Pena que a cópia que colocaram no You Tube não tenha legenda, mas, se você entende farsi o filme está dividido em 2 partes.)
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