sexta-feira, 15 de abril de 2011

PAPIRO VIRTUAL 22



Orgulho, Preconceito e as Greves Operárias

Roberto Rillo Bíscaro

Em Bleak House, Mr. Rouncewell é representante da nova classe social surgida no norte inglês com o advento da Revolução Industrial. Filho da governanta do aristocrático Sir Leicester Deadlock, o jovem abandonara Chesney Wold, onde seu futuro seria cuidar da propriedade dos Deadlock, Ao invés, dirige-se ao norte e torna-se um bem sucedido capitão de indústria no ramo do ferro. Tão exitoso a ponto de ser convidado a assumir cadeira no Parlamento, para escândalo de Sir Leicester, que interpreta o convite como mais um sinal da decadência dos valores morais e dos laços sociais do país. Mr. Rouncewell não desfrutou de educação esmerada, mas fez questão de proporcionar a melhor instrução para os filhos. Quando seu mais jovem se apaixona pela aldeã Rosa, atendente de Lady Deadlock, o pragmático industrial visita Chesney Wold para comunicar aos Deadlock que não se opõe às origens humildes de Rosa, mas coloca 2 condições para a realização do casamento: Rosa terá que abandonar seu posto subserviente e receber alguma educação que a torne condizente com a nova situação social que se lhe avizinha.
Mr. Rouncewell me lembrou John Thornton, industrial do algodão que contrata tutor privado para melhorar sua educação. Thornton é personagem de North and South, de Elizabeth Gaskell, cuja adaptação em minissérie pela BBC assisti e comentei em 2009. Fiquei com vontade de ler o livro para conhecer melhor o que Dickens apenas esboçara. Além disso, North and South é uma espécie de companheiro para Mary Barton, também ambientado no norte industrializado inglês. Mas, Mary é uma jovem operária sem instrução formal, ao passo que Margaret Hale é a articulada e instruída heroína de North and South. Tais entrelaçamentos de interesse me fizeram pegar o volume de mais de 500 páginas, que jazia há anos na estante.
North and South foi serializado em 22 capítulos semanais entre setembro de 1854 e janeiro de 1855. Gaskell voltou ao tema industrial a pedido de Dickens, uma vez que a obra saiu no Household Words, publicação dirigida pelo criador de Oliver Twist. Posteriormente, foi lançada em livro, mas em versão aumentada. Em um curto prefácio, a escritora afirma que a serialização não permitira que a obra ficasse como primeiro fora planejada. Os eventos finais haviam sido rápidos demais. A autora reconhece que isso se deveu às próprias exigências e convenções folhetinescas. Assim, a versão em livro trouxe capítulos e passagens extras, que, segundo ela “até certo ponto remediariam esse defeito”. Ela tinha razão: remediaram até certo ponto, especialmente no começo da narrativa, quando as coisas acontecem ora lentas ora desconexas demais para um romance.
Margaret Hale é filha de um clérigo pobre e de uma mulher de família mais elevada, que, em virtude da falta de progresso do marido na carreira eclesiástica reclama constantemente do lugar onde vive. O casal envia a filha para a casa da tia, rica, mas que reclama de também haver casado erroneamente, porque seu falecido marido era muito mais velho. Em Londres, Margaret vai ser a companheira da prima Edith até que esta se case e a jovem Margaret volte a Helstone, idílica aldeota cercada por florestas. Gaskell colocou Margaret para experimentar a metrópole-capital com seus modos gentis e esnobes e também a Inglaterra rural, antes de transportar a personagem para o urbano norte pungente, pragmático, pouco afeito a cavalheirismos, sujo e cheio de desigualdades sociais.
A mudança de ambiente ocorre porque Mr. Hale tem uma crise de fé – bem mal explicada – e decide afastar-se o mais possível de Helstone. A escolha de Milton-Northern (nome que camufla a real Manchester, de Gaskell) se dá porque o ex-reverendo quer se manter ocupado e também porque já tinha um pupilo arranjado: John Thornton, o empresário algodoeiro, meio sem trato social, mas desejoso de melhorar sua educação através de aulas com o ex-reverendo.
Margaret e a mãe não escondem seu desapontamento com a perspectiva de viver em uma cidade manufatureira. Parece importar menos a poluição e o tamanho da nova forma de cidade do que o fato de ser uma urbe de comerciantes, classe desprezada pela criação aristocrática – ainda que sem onde cair morta – de Margaret. Como alguém que podia comprar linho preferiria a vulgaridade do algodão? assombram-se as duas. Medo da produção em massa, que possibilitaria maior acesso de bens a parcelas mais significativas da população. No fundo, o preconceito de Margaret está enraizado no seu medo da democracia.
O capítulo VII, New Scenes and Faces, é verdadeira jóia narrativa e imagética. Suas poucas páginas narram a ida da família à Milton-Northern e o primeiro encontro de Miss Hale com Thornton. Como no Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, um não tolera o outro por motivos bastante similares aos de Mr. Darcy e Miss Bennett. Mas, como a Inglaterra mudara nos 50 anos que separam os 2 romances! No mundo rural de Austen, o urbano e o manufatureiro eram ecos quase surdos vindos de um longe que não chegava a ter forças para penetrar em Pemberley. A Inglaterra de Gaskell é a da transformação inexorável da população rural em citadina.                    
É a Inglaterra onde o sentido de tempo mudava: a viagem do sul para o norte do país leva algumas horas, de trem, e não mais os dias de carruagem de Austen. A natureza e a leitura de seus sinais se alteravam: ao se aproximar de Milton, Margaret imagina que as nuvens cor de chumbo vistas ao longe são de chuva. Não. São de poluição. A descrição de Gaskell em muito lembra a que Dickens fez de Coketown, em Hard Times. Ambos falam da Inglaterra se modernizando. O vocabulário da língua inglesa se vê acrescido de novos termos: falando sobre o bairro onde alugarão a casa na nova cidade, Margaret pergunta, “in Crampton, don’t they call the suburb?” Carruagens, linho, a Inglaterra rural, tudo sendo jogado no vórtice da mecanização. Para os habitantes mais jovens de Milton, o contato com a natureza deixara de ser experiência vivida para ser experimentada via narração. É como se a Natureza estivesse virando apenas discurso. Sou fascinado por essa literatura que descreve o “começo’ do nosso mundo, dominado  pelo vórtex do processador quântico.    
Se os Hale são inchados pelo preconceito gentílico de classe, os novos-ricos Thorntons não são melhores nem diferentes. Mrs. Thornton adverte o filho para não se envolver com uma garota sem tostão. O esposo suicidara-se em virtude do montante de dívidas acumuladas por suas atividades de especulação financeira. Coube a seu filho sustentar a mãe e a irmã trabalhando em uma loja. Num espetacular exemplo webberiano de ética protestante, John Thornton e a mãe abriram mão de qualquer prazer terreno e se dedicaram ao trabalho duro e à poupança. Conseguiram assim, não apenas saldar as dívidas, mas também entrar no negócio da produção de tecidos de algodão. Não sem a ajuda de um dos credores, que aceitou John como espécie de sócio. Agora, em posição privilegiada, o jovem manufatureiro liberalmente desconsidera o privilégio e culpa aqueles que não logram progresso econômico, como causadores da própria condição econômica desfavorável, por não terem se privado de prazeres no passado.    
O desligamento de Margaret em relação a seu novo habitat começa a desaparecer quando entra em contato com os Higginses, família de operários locais. A jovem Bessy teve os pulmões destruídos pela inalação excessiva dos flocos de algodão que pairam nas tecelagens, que operam sem instalar aparelhos para reduzir a fuligem branca. O romance dá a entender que já havia tecnologia disponível para isso na época, mas a maior parte das fábricas não instala os filtros porque são caros e não trariam lucros. O próprio John Thornton só instalara chaminés redutoras de fumaça porque economizaria em carvão (o jovem, inclusive, é contra a legislação parlamentar que obrigaria a instalação dos filtros, uma vez que feriria a “liberdade” dos industriais...).
O olho feminino de Gaskell é capaz de largas pinceladas a partir de simples detalhes. Observando a roupa da abastada Mrs. Thornton, Mrs. Hale observa que os pontos do bordado são de um tipo “tipicamente inglês” que deixara de ser utilizado há décadas. Sinal de que provavelmente a senhora pertencia a alguma linhagem antiga, que no passado, fora mais do que “vulgares” manufaturistas. 
Os capítulos que lidam com a situação dos trabalhadores, a organização da nova cidade industrial e a greve são os mais interessantes de North and South. A greve é usada como momento de corte, quando Margaret corajosamente defende Mr. Thornton e este se dá conta de que está apaixonado por ela. A partir daí segue-se o jogo de proposta de casamento, recusa e tomada de consciência do amor, bem ao estilo de Austen, pelo menos em termos de enredo. Gaskell já apresenta incipientes investigações psicológicas, ainda impossíveis para Austen.
A mudança de atitude ocorre não apenas na esfera amorosa, mas também na percepção social dos protagonistas. Mr. Thornton também altera suas convicções a respeito dos trabalhadores, uma vez que estabelece amizade com Higgins. No fundo, Gaskell propõe uma sociedade onde patrões e empregados possam coexistir pacificamente desde que os 2 lados ouçam o que o outro tem a dizer. A questão da propriedade como geradora inexorável de tensão e diferença é idealisticamente resolvida em uma sociedade cristã, mas que continuará com ricos e pobres; cada um em seu lugar, embora um ou outro pobre possa ser amigo dos abastados. Pelo menos é isso que a amizade entre Thornton e Higgins deixa transparecer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário