segunda-feira, 23 de maio de 2011

CAIXA DE MÚSICA 33

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Menos é o Novo Mais

Roberto Rillo Bíscaro


Em 1978, quando estava na quinta-série e tinha 11 anos, apaixonei-me por uma canção dramática interpretada por uma mocinha de voz agudíssima e que tinha um lindo solo de guitarra. Metade do planeta acompanhou-me na paixão. Wuthering Heigths lançou a britânica Kate Bush ao estrelato. Só anos depois, soube que a letra é uma alusão ao romance homônimo de Emily Bronte. Rumores sobre Bush, porém, vieram muito antes de eu começar a penetrar em seu rico universo referencial. Ainda aos 11 anos, ouvi dizer que “a menina que canta essa música morreu”. Na afastada Penápolis, a súbita decisão da artista de não mais fazer turnês deve ter chegado distorcidamente interpretada como óbito.

A única turnê de Bush durou apenas 6 semanas. Para promover o álbum de estreia e provar que não era outra marionete no mundo pop, a cantora montou um show visual e tecnologicamente ambiciosos para a época. A 14 de maio de 1979, porém, anunciou que jamais cairia na estrada novamente. Exaustão, medo de voar, aversão à exposição e publicidade excessivas e a trágica morte de um engenheiro de som durante a excursão têm sido argumentos explicativos para essa decisão tão pouco usual no mundo do rock, movido à promoção. Quaisquer que tenham sido as razões, Kate Bush optou por se trancafiar em estúdios e produzir álbuns e vídeos recebidos de joelhos por críticos e um público fiel. Aparições apenas estritamente necessárias para a promoção de novo material. Apresentações ao vivo em programas de TV ou participações especiais em shows, poucas. Antes de Madonna, La Bush foi a primeira mulher a obter total controle sobre sua carreira.
O espaço de lançamento entre um álbum e outro foi aumentando. Obcecada por perfeição, Kate gravava e retrabalhava meticulosamente cada trecho das canções. Entre 93 e 2005, a artista ficou em silêncio, concentrando-se em sua vida privada, tendo um filho, Bertie. Personalidade tão reclusa sempre gerou rumores inúmeros como alcoolismo e distúrbios mentais. Dizem até que estudou o modo de comunicação dos golfinhos. Vai saber...

No início deste ano, Kate anunciou o lançamento de Director’s Cut, onde regravaria algumas canções de 2 álbuns: The Sensual World (1989) e The Red Shoes (1993). Também disse que trabalhava em material para um novo álbum e até considerou a possibilidade de nova turnê, aos 52 anos. A promessa de novo lançamento colocou crítica e fãs naquele estado de antecipação e frenesi que precede qualquer movimento da artista mais inovadora que a Inglaterra produziu.
A divulgação da regravação de Deeper Understanding no You Tube, no início de abril, dividiu os fãs e deixou os mais puristas (e desatualizados) de cabelo em pé: Kate Bush estava usando Auto-Tune! Ora, a canção fala sobre uma pessoa cuja única ligação com o mundo é o computador e o recurso de tratamento vocal aparece após o verso “I press execute”. Uma coisa é usar Auto-Tune como Ke$ha e Jessie J, outra bem diferente é utilizá-lo quando contribui formalmente com a canção. Até parece que Kate Bush é novata no uso da tecnologia para dar novas tonalidades á voz e construir multitexturas sônicas.

A tônica de Director’s Cut é despir os originais de elementos orquestrais e sintetizadores. A produção mais pesada, característica da década de 80, deu lugar a arranjos mais orgânicos que permitem maior respiração às melodias.  Menos é o novo mais para a Kate Bush madura. Song of Solomon ganhou delicadeza que valoriza a canção e os vocais e permite que as portas do paraíso se abram de verdade quando o Trio Bulgarka faz sua participação arrepiante. Tirado o glacê da produção, Lily continua musculosa e a voz de Bush incandesce na letra que traz uma imagem poderosa: a cantora em meio a um círculo de fogo, protegida pelos arcanjos Gabriel, Miguel, Rafael e Uriel.
Não se trata de dizer se as canções ficaram melhores ou piores; ficaram diferentes. Moments of Pleasure transformou-se em uma elegia ao som de piano, muito mais lenta do que o original já desacelerado e emoldurado por orquestração luxuosa. A adição de um coral meio em tom natalino deu outro tipo de esplendor à faixa. Modos distintos de experimentar o sublime.

The Sensual World foi rebatizada como Flower of the Mountain porque Bush finalmente conseguiu permissão para utilizar o solilóquio de Molly Bloom, que aparece no final do Ulysses, de James Joyce. Oui, mes amis, Kate Bush é cult(a)! Seu registro vocal mais maduro e quente, combinado com a melodia fluida e algo orientalizada continua despertando desejos de sair deslizando por uma floresta, como no clipe original.
The Red Shoes e sua letra alertando acerca dos perigos de se obter o que se deseja não perdeu nada de sua telúrica força folk. Pelo contrário. Quando Bush grita “really happening to you” dá uma baita vontade de calçar os mágicos sapatos vermelhos e circundançar celtas fogueiras em noites plenilunares de verão pré-medieval até o calçado gastar.
A mudança mais radical fica por conta de Rubberband Girl. Os elementos de funk eletrificado e os vocais cristalinos do original foram substituídos por um clima de pub londrino esfumaçado da década de 60. Puro Stones e Kinks!

Hora de uma confissão: quando ouvi Director’s Cut pela primeira vez deixei This Woman’s Work para o final. Pulei a faixa. Tinha medo da comparação com o original orquestrado e dramático. O clipe e a canção estão entre meus favoritos de todos os tempos. Ouvi a nova versão à noite, deitado. A orquestração foi substituída pelo que soa como um piano elétrico e a interpretação está mais etérea, como os arranjos. Lembrei-me da morte que ronda o vídeo e acho que entendi a nova roupagem de This Woman’s Work. Tia Kate simplesmente conseguiu compor a trilha sonora para uma daquelas experiências de quase morte! Se o flutuar em paz, em direção a uma luz branca – mencionado por tanta gente – tiver música de fundo, esta foi capturada por Bush. Novamente, outra forma de experienciar o sublime. Mas, como se trata dum clássico de seu repertório, dividirá fãs. Se tivesse que escolher qual versão levar para uma ilha deserta, ainda ficaria com a original, mas apenas porque desencadeia tanto em mim, mesmo após 20 anos de repetidas audições.
Director’s Cut traz a artista se reinventando sem alarde e até no título provando que quem manda em sua carreira é ela. Um exemplo de independência e integridade artísticas. Por mais fascinantes que sejam as releituras, porém, resta a ansiedade por material novo.                        

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