Ela Vai Para o Trono ou Não Vai?
Roberto Rillo Bíscaro
Roberto Rillo Bíscaro
Quando ouço algumas canções de The Fame, primeiro álbum de Lady Gaga, a discrepância entre o clima alegre da batida e o tom lúgubre dos teclados chama minha atenção. Não deixo de pensar na sociedade pós-moderna que mascara a ansiedade com a fluoxetina prescrita por doutores ou o estresse minimizado com a endorfina liberada em triplas idas semanais à academia. Se isso procede, o grande comentário social de sua música está mais na forma do que no conteúdo, que também é importante, claro, com suas mensagens inclusivas e afirmativas. A cantora apresenta-se como espécie de madrinha de freaks, nerds, dorks e outras tribos. No caso dos gays, ela literalmente vestiu a carapuça aceitando o convite pra ser madrinha do filho adotivo de Elton John.
A conquista do planeta com o primeiro álbum e os figurinos pouco comuns é fartamente conhecida e documentada. Gaga é alardeada como a sucessora de Madonna ao trono de rainha do pop. Born this Way, seu segundo álbum, consolida essa aposta, além de deixar cristalinamente claro que a marca de Madge permanece imaculada na genética de Gaga. Outro dia, ouvi que as 2 podem, inclusive, ser primas em nono grau.
Sem dúvida, Born This Way é o lançamento mais aguardado, discutido e hooplado do ano. Quando a faixa-título caiu na rede, há algumas semanas, a primeira polêmica: disseram que era cópia de Express Yourself, de...Madonna! Gaga ficou brava, mas dá pra cantar a letra da canção de Madge em cima de Born This Way e o vocal também remete à rainha oitentista.
Madonna está presente em inflexões e certos maneirismos vocais e também no clima de provocação e fetichismo religiosos que permeiam o novo álbum de Gaga. Quem esquece o escândalo de Like a Prayer e as tentativas da Igreja Católica de boicotar Madge nos anos 80? Jesus Cristo é citado em várias letras e há uma canção (maravilhosa) chamada Judas, que tem clima gótico bastante domesticado pra agradar aos não iniciados. E o que dizer de canções com título como Electric Chapel, que tem guitarra roqueira, e Bloody Mary?
A utilização de elementos da electronica alternativa é algo que Lady Gaga aprendeu direitinho. Basta escutar coletâneas de synth pop europeu pra perceber como aparecem decantados em diversas faixas de Born This Way.
Uma coisa que é preciso levar em conta é que muito do que soa como novidade pro público norte-americano não o é pra nós, cujas rádios sempre tocaram eurodance. A faixa de abertura, Marry the Night, é puro eurodance noventista.
Pra geração oitentista, Gaga dificilmente soa como novidade e não apenas por conta da influência de Madonna. A fusão de dance com hair metal, de Bad Kids e o clima Pat Benatar com teclado progressivóide de Hair, atestam isso com eficácia. A canção tem até solo de sax. Quer coisa mais típica da década de 80?
Em tempos de globalização, o álbum tem sua cota de latinidad ciganada com Americano, cantada parcialmente em espanhol. A vibrante pulsação de rave de Scheiße tem introdução em alemão. Uma porrada dançante extraída diretamente do lençol freático da electronica européia. Estupenda.
A canibalização explícita de Born This Way não desmerece Lady Gaga. Madonna também é canibal; o pop é canibal. A jovem norte-americana está anos à luz à frente de suas pobres rivais autotunadas. Ela sabe exatamente o que quer, controla seu trabalho e ressignifica elementos diversos e distintos pra criar sua versão do pop contemporâneo, que não poderia mesmo existir sem o que veio antes.
A fila anda e reinados terminam. É assim que tem de ser. Se o de Madge acabou, que Gaga suba ao trono sossegada. Born This Way prova que Madonna será a Rainha-Mãe.
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