quarta-feira, 29 de junho de 2011

CONTANDO A VIDA 40

Com a correria da vida contemporânea e suas geringonças maravilhosas, será que ainda cabe afirmar que existe um tempo para cada coisa? É sobre essa questão que nosso cronista filosofa sebianamente hoje.  

A MÁQUINA DO TEMPO...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Dia desses, nem sei por que motivo, me veio à lembrança uma das passagens bíblicas de que mais gosto. Inscrita no Eclesiastes, lê-se que há um “tempo para tudo”: tempo para amar, tempo de guerrear, de lembrar e esquecer; há um tempo de rasgar e outro de coser.” Bonito, não? Profundo também. Impossível, contudo. Se considerarmos os atropelos e encargos da vida moderna tem-se direito de duvidar da possibilidade de separação temporal, do tempo único, exclusivo, seleto e bom. Vidro frágil e sujeito a pedradas, a meditação sobre a tranquilidade faz com que consideremos os doces versos de Tom Jobim, uma ilusão sem lugar, pois como supor além da utopia, hoje, “um cantinho um violão/ Este amor, uma canção/ Pra fazer feliz a quem se ama/ Muita calma pra pensar/ E ter tempo pra sonhar...”. Tempo pra sonhar... aiai...

Globalizados, vítimas da síndrome do instantâneo ou do chamado “tempo real”, somos arrastados a viver sincronicamente processos variados. O espaço e o tempo modernos se fundem anulando velhas concepções. Em casa, na solitude do quarto, no escritório na imersão do trabalho, no espaço de lazer perturbando o benefício do ócio eis que celulares, computadores, notícias radiofônicas ou televisivas nos tragam. E o ritmo é tão alucinante como o espetáculo que transforma um acontecimento em mais sensacional do que o anterior. Na voracidade da informação, distâncias ficaram anuladas e sem valor a imposição de fusos horários. Tudo é aqui e agora e acontece frente aos nossos olhares cada vez mais desorientados e passíveis. Obsessões de atualidade nos fazem consumidores de novidades como se elas atualizassem nossas ligações com o mundo e nos fizessem mais conscientes. Sem dúvidas, os aparelhos da modernidade eletrônica facilitam muito, mas o fazem em conluio com o capital e com o fito de nos habilitar mais produtivos para o trabalho e seus desdobramentos. Brota daí o dilema ontológico entre o homo sapiens e o homo faber. Tudo é muito sutil e perverso, pois no mesmo impulso do voraz consumismo que nos caracteriza corre a facilitação para avanços da ciência ou da comodidade desejável. A pluralidade de respostas oferecidas pelos tais “progressos” confunde muito. É comum não termos respostas absolutas sobre conveniências ou encargos negativos destes aparelhos que sim, são viciantes na mesma medida em que curam males ou ocasionam prazeres. Como pensar, por exemplo, em viver sem computador? Na sequência em que os serviços – contas, inscrições em concursos, pagamentos agendados pelo ministério público – são feitos via máquinas, como ficar sem eles? E os deleites da música ou do cinema ao se tornarem portáteis? Encantos. Nem preciso evocar o significado de “analfabetismo digital” para dizer do impacto das máquinas na vida cotidiana e da solidão que teríamos, modernamente, sem elas.

O desejável equilíbrio entre virtudes e fatalidades da eletrônica moderna torna-se complicado quando exercitamos a leitura da vida pela ótica do tempo e da temperança. “O tempo não para” alertaram Cazuza e Arnaldo Brandão, que nos agrediram com passagens como esta “Disparo contra o sol/ Sou forte, sou por acaso/ Minha metralhadora cheia de mágoas/ Eu sou um cara/ Cansado de correr/ Na direção contrária/ Sem pódio de chegada ou beijo de namorada/ Eu sou mais um cara”. Antes deles, aliás, Raul Seixas declamava o direito à confusão pessoal dizendo que “Eu prefiro ser/ Essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião/ Formada sobre tudo/ Do que ter aquela velha opinião/ Formada sobre tudo/ Sobre o que é o amor/ Sobre o que eu nem sei quem sou/ Se hoje eu sou estrela/ Amanhã já se apagou/ Se hoje eu te odeio/ Amanhã lhe tenho amor”. Sintoma efervescente do posicionamento humano, a exigência da mutação sensível é um dos dramas mais sérios da vida contemporânea. O que mais fica comprometido é a segurança dos valores. Como não nos resta tempo para pensar, decidir, assumir posições que nos definam com fundamentos, o tempo real nos faz vulneráveis aos ventos. O excesso de notícias, o bombardeio de opiniões contrárias e contraditórias, a velocidade da sucessão de fatos dramáticos, permitem pensar que a evocação bíblica tem efeitos poéticos e que por isso mesmo nos deve evocar a saudade do tempo de sua inocente leitura.  

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