NÃO EXISTE PECADO DO LADO DE BAIXO DO EQUADOR... NÃO?
José Carlos Sebe Bom Meihy
A canção “Não Existe Pecado do Lado de Baixo do Equador” - assinada por Chico Buarque de Holanda/Ruy Guerra e consagrada pela interpretação de Ney Matogrosso - é perturbadora em todos os sentidos. Fragmento de uma opereta, “Calabar”, proibida pela censura durante a ditadura militar, significou um jeito de furar o bloqueio imposto à cultura popular que pretendia dizer coisas desagradáveis ao sistema. De início a letra apregoava “vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor”. Graças à tesoura do poder, no entanto, o verso foi substituído por “vamos falar um pecado rasgado, suado, a todo vapor”. Isso, contudo é apenas mais um detalhe no intrincado jogo metafórico encerrado na frase que aparentemente é simples e de fácil entendimento.
Oficialmente, a citação destila o suposto histórico decantado na Europa colonizadora propagadora de que ao sul da linha equatorial tudo seria permitido, nada censurado e, portanto, valia o que quisesse. Tal afirmativa, como moeda sutil, ostenta até hoje, dois lados interpretativos. Em uma face fica lastreado o tom metropolitano, pejorativo, dominador e moralista, que advoga permissividades desmedidas, coerentes com desgovernos, indisciplina coletiva, falta de regras, sem limites ou aparelhos reguladores. Contraste da suposta ordem reinante no norte, o sul seria um mundo desvairado, tropical, destinado à bagunça. Na mão contrária corre a verve hilária que faz daquele suposto algo positivo, excitante, com gosto de deliciosa subversão, licença que equivale propagar a permissividade como virtude, como situação antagônica a um mundo moralista, fechado, chato e, sobretudo, infeliz. Dizendo de outra forma. a libertinagem vista daqui seria antídoto contra o cosmo europeu e por isso paraíso tropical, terreno perfeito para as delícias que eliminavam condenações dos pecados.
Via de mão dupla, ao longo dos séculos esse suposto é usado nos dois sentidos. Seja para condenar, seja para saudar, retoma-se sempre o dito de que “não existe pecado do lado de baixo do equador”. Mas, a polissêmica referência não trata apenas de geografia ou localização no mapa. Quando transposto para o terreno corpóreo, inscrito na biologia humana, a situação ganha quilate interpretativo mais picante. A linha do equador no caso induz pensar que o sul e o norte do corpo são dados por uma linha imaginária da cintura para cima ou para baixo. Digamos que, do umbigo para o sul é zona do não-pecado. Se assumirmos isso, tudo ganha explicação cultural mais fácil. Vejamos, sem censura, a valorização obsessiva que tem entre nós as pernas. Somos conhecidos pelo samba, frevo, baião, maxixe, forró e agora pelo rebolation, pois bem, todas essas danças usam e abusam dos movimentos das pernas, dos passes rápidos e agitos que exigem ritmo e articulação. No esporte, somos imbatíveis no futebol e o driblar, as embaixadinhas, as tesouras, são provas evidentes de que sabemos mexer as pernas como ninguém. E haja requebros, gingas, “jogos de cintura”. A capoeira desponta no mundo como nova manifestação da cultura brasileira e as pernas, mais uma vez, são consagradas como facilitadoras dos movimentos exigidos. Sem exagero, é difícil explicar a cultura brasileira se não levarmos em conta o tal “sul do equador”. Que dizer, por exemplo, dos passes das nossas cabrochas? E do andar lascivo das meninas a caminho do mar? Não é sem razão que o bardo da bossa nova dizia que “quem não gosta de samba, bom sujeito não é/ é ruim da cabeça ou doente do pé”. As revistas masculinas expressam incessantemente preferências que atestam a valorização do traseiro feminino com atributo desejável pelos homens e recentemente temos ficado surpresos com a liberdade feminina de elogiar os homens vistos de costas. Mas, pergunta-se: o que há de tão fecundo no debate sobre o não-pecado ao sul do corpo? A resposta é sintomática da movimentação de nossa cultura que ginga, requebra, dribla os problemas que atormentam nossa movimentação enquanto brasileiros.
Foi preciso tempo para que os seios fossem mais valorizados, mas mesmo assim sem desmerecer as pernas. O dilema que resta é significativo: seremos um país sério se deixarmos de valorizar as pernas? De maneira mais determinada questiona-se: com a inscrição do Brasil como país capital no desenho do mundo capitalista, continuaremos sem pecado ao sul do equador?
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