quarta-feira, 31 de agosto de 2011

CONTANDO A VIDA 49

De volta à interpretação histórica via MPB, nosso professor-cronista veste balangandãs e fala sobre a alfinetada que Carmem Miranda deu em Gegê. Além disso, aprenderemos porque comer salsicha à noite não é bom.  

CARMEM MIRANDA E MOREIRA DA SILVA: sambas em paródia.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Em 1940, depois de brilhar na Broadway, nossa Carmem Miranda voltava ao Brasil. Havia duas tendências críticas, uma a seu favor, outra oposta. Consagrada, a “pequena notável” era presença obrigatória nos noticiários e arrebatava um público fiel, mas, avesso disso, os olhos atentos do governo varguista, então, lançavam pejas aos “modos americanizados”, pretensamente assumidos pela interprete que figurava já como a cantora e atriz mais aclamada do mundo. O debate crescia e em sua intimidade dimensionava posturas políticas vinculadas às crises internacionais.

Enquanto a Europa ardia na Segunda Guerra Mundial, aqui, articulava-se de um lado os postulados nacionalistas do Estado Novo, de nítidas feições ítalo-germânicas, e de outro a simpatia popular crescente para com os Aliados imersos na contenda. Até então, o Brasil não participava diretamente do conflito, fato que apenas ocorreu a partir de 1942. Antes, porém, o Presidente Vargas, mostrava-se germanófilo convicto e nesse então, a música popular brasileira filtrava tensões polarizadas. Foi assim que se deu o incidente envolvendo Carmem Miranda, chamada pelos governistas de “vendilhona”. Tudo se deveu principalmente ao fato de ter se apresentado, em março de 1940, na Casa Branca, para o Presidente Roosevelt. De volta ao Rio, viu insuflada contra ela vil campanha. Isso, aliás, era contraste perfeito com o crescente sucesso popular. De toda forma, no Cassino da Urca em junho daquele mesmo ano, quando se apresentou no show de estreia, teve gélida acolhida, pois a plateia constituía-se da cúpula governamental. Logicamente, a inquieta cantora não se conteve e apresentou uma resposta humorada, na qual retrucava as acusações. Em composição de Luiz Peixoto e Vicente Paiva intitulada “Dizem que Voltei Americanizada” Carmem rebatia: “E disseram que eu voltei americanizada/Com o ‘burro’ do dinheiro, que estou muito rica/Que não suporto mais o breque de um pandeiro/E fico arrepiada ouvindo uma cuíca/Disseram que com as mãos estou preocupada/E corre por aí que ouvi um certo zum-zum/que já não tenho molho, ritmo, nem nada/E dos balangandãs já nem existe mais nenhum/Mas p'rá cima de mim, p'rá que tanto veneno?/Eu posso lá ficar americanizada?/Eu que nasci com samba e vivo no sereno/topando a noite inteira a velha batucada/Nas rodas de malandro, minhas preferidas/eu digo é mesmo ‘eu te amo’ e nunca ‘I love you’/Enquanto houver Brasil... na hora das comidas/eu sou do camarão ensopadinho com chuchu!”.
Pois bem, ainda que “Dizem que Voltei Americanizada” seja muito mais conhecida, não foi a única agulhada que o sistema sofreu. Outro samba de semelhante feição paródica, expunha o lado popular da crescente crítica às posturas do governo. Em termos musicais, talvez a melhor prova da não aceitação da posição de Hitler derivou do samba “Esta Noite Eu Tive um Sonho”, de 1941, feito pela dupla Wilson Batista e Moreira da Silva. Vejamos a letra: “Saltei em Berlim, entrei num botequim/Pedi café, pão e manteiga pra mim/O garçom respondeu: não pode ser não!/Fiquei furioso e fui ‘hablar’ ao patrão/Que me recebeu com duas pedras na mão/E me disse quatro frases em Alemão/’Néris’ disso, sou doutor em samba/Venho de outra nação!/Tive vontade de comer uns bifes/Ich nag dich, seu Fritz/Não se resolve assim não/Venho do Brasil/Trago um presente pro senhor/Esta ganha e esta perde/Na voltinha que eu dou/Já tinha ganho todos os marcos para mim/Quando ouvi o ruído de um Zeppelin/Eu acordei, tinha caído no chão/Salsicha à noite, não faz boa digestão”.
Pelo sim ou pelo não, de forma indireta, como se vê nos dois casos, a música popular expressava tendências que se apresentavam como alternativas ao discurso político estadonovista. O que chama a atenção no caso é nosso despreparo para ouvir na música os apelos que dimensionavam contextos que as explicam. Vale também ressaltar o caráter espirituoso do principal ritmo nacional que sabiamente se imiscuiu na opinião pública de forma a atuar na decisão nacional de sermos o único país da América Latina a participar daquela que foi a mais fatal das Guerras.

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