Feudo Rio x São Paulo? Veja o
que nosso cronista paulista tem a dizer a respeito de migrar pra Cidade
Maravilhosa, de Coelho Neto.
EU, CIVILIZADOR DO TIETÊ.
Quando requeri minha
aposentadoria se me abriu um leque de possibilidades. Só, com filhos crescidos
e carreira concluída, restava pensar um cenário para os dias que, supunha,
deveriam ser mais calmos. De forma ingênua, desconhecendo o potencial da força
de meus impulsos mais viscerais, assumi o velho pressuposto de que
aposentadoria significava vida mais calma. Ledo engano. Mas, na tentativa de
acertar, medi as alternativas que apareceram, pois ainda antes dos 60 anos
restava dimensionar novos rumos. Viver no exterior foi opção logo rejeitada,
pois queria ver os netos crescerem. Mesmo outros estados distantes que me
chamavam para aulas não me atraíram pelo mesmo motivo. Ficar em São Paulo não
era opção sensata, porque não mudaria muito e provavelmente trabalharia do
mesmo jeito. A alternativa da volta para Taubaté está guardada para depois,
pois é aí que pretendo terminar meus dias. Foi assim que vislumbrei a
possibilidade de viver num lugar que sempre me encantou: o Rio de Janeiro.
Ademais, uma oportunidade de trabalho poderia ajudar no estabelecimento de um
projeto que deveria durar alguns anos.
Aluguei então um apartamento
em Ipanema e, frente à perplexidade de todos, mudei-me. Confesso que de início
não achava que teria dificuldades. Afinal, desde garoto sempre frequentei a
“cidade maravilhosa” e tinha contato com muitos cariocas. Sem exagero, diria
que me achava conhecedor do tal “espírito carioca” e minhas constantes viagens
teriam anulado o alcance de surpresas. Sem medo de errar, afianço que este foi
um dos mais crassos erros de minha vida. O Rio me é uma novidade diária. Talvez
a maior e mais estranha delas resida no fato de ter me descoberto paulista
aqui. É lógico que sempre vivi a disputa entre São Paulo e Rio, mas era algo
intermitente, quase engraçado. Ao me deparar com um cotidiano que preza esta
disputa como maneira de garantir a honra, logo me vi convidado a assumir alguns
atributos que garantissem minha integração na simpática tribo local. A primeira
delas foi torcer pela Flamengo e o critério de escolha foi fácil: se em São
Paulo sou corintiano, pelo tamanho da torcida, no Rio seria flamenguista.
Troquei a imensa simpatia por São Francisco pela devoção a São Sebastião e
mesmo achando que perdia na substituição dos passarinhos e demais animais que
formam o imaginário do santo de Assis, vi nas flechas cravadas no corpo do
mártir um certo heroísmo simpático. Com escolas de samba nunca tive problemas,
pois como outros taubateanos – a Duda e o Flávio Sapatão que o digam! –
Mangueira sempre me cativou e não tinha outras preferências sambísticas sérias
em São Paulo. Mas, tudo isto foi pouco. Lembro-me de uma vez que ao entrar no
táxi, com poucas palavras disse ao motorista? “por favor, vamos ao aeroporto”.
Pois bem, bastou isso para que ele dissesse “o senhor é paulista”.
Espantado, perguntei como sabia e ele respondeu que só paulista pede primeiro “por
favor”. E então comecei a prestar atenção em detalhes nunca d’antes
imaginados: em elevador, por exemplo, os cariocas não se cumprimentam como
fazem os paulistas, mas, olham para seu rosto e contam sonhos incríveis e até
proibitivos. A questão do jeitinho quase me fez voltar, pois é muito agressivo
dizer “não” em filas, em supermercado ou cinema. Uma das diferenças que mais
notei foi nas feiras e isso, não só pela diferença na qualidade dos produtos,
mas também, e principalmente, pela ausência de japoneses. Mas, há mais alegria
nas feiras cariocas. Os temas do cotidiano são traduzidos imediatamente e, em
conversas sempre animadas, somos integrados e logo trocamos receitas.
Todo este exercício de vida
tem me levado a uma revisão conceitual do que é ser paulista no Rio. E
estabeleci regras de convívio que aliviam as diferenças. Entre outras, por
exemplo, aprendi que é relevante dizer que sou “cariolista” ou “paulistóca”.
Isso agrada, mas outro dia, para maior perplexidade minha, ouvi algo que me
encabulou. Alguém, inteligente e irônico, ao saber que era “de São Paulo”
disse: “ah! Você é mais um civilizador do Tietê”. Seria então um desses
“que se aposentam e vêm ao Rio se preparar para a outra vida”. Sem saber
se era elogio ou ataque, voltei pela praia pensando que no fundo há algo de
verdade nisso. Uma verdade tão real como a praia de Copacabana, o Pão de Açúcar
ou o Corcovado.
O que dizer de mim que sou 100% baiano, da cor do miolo do acarajé e da polpa do cacau e troquei o Farol da Barra pelas antenas da Av. Paulista, a eterna brisa fresca do mar pela eventual neblina e o perfume inconstante do Rio Pinheiros?
ResponderExcluirSer cigano é viver aos solavancos, reconhecendo fragmentos em inteiros até então desconhecidos.