Carlito esteve em casa durante quase todo o mês de
agosto. Um domingo em que preparava postagens pra estocar pra semana ele
colocou um filme no DVD. Escolheu um falado em espanhol, Ander (2009).
Como o CP fica ao lado do DVD eu ouvia os diálogos. Percebi trechos
ininteligíveis, porém. Espiei e vi legendas. Parte do filme era em basco. Segui
trabalhando e ouvindo o espanhol. Depois que Carlito se foi, revi Ander pra ler
legendas e preencher lacunas. Essa dupla mirada revelou-me 2 filmes diferentes.
Quando (ou)vi pela primeira vez, o filme me contou a
história de Ander, 40tão que mora na zona rural do País Bascocom a mãe e a irmã
prestes a se casar. Além do sítio, Ander trabalha em uma fábrica. Depois de
fraturar a tíbia, a família vê-se obrigada a contratar um ajudante; José,
imigrante peruano. A proximidade física e a doçura do estrangeiro despertam em
Ander o que estava escondido e não admitido dentro dele. Porém, como se
autoaceitar e lidar com um comportamento socialmente reprovado, especialmente
no conservador meio campesino? Como Ander responderá a seu desejo homoerótico é
do que se ocupa a maior parte do filme, discreto, silencioso e lento.
As personagens tendem ao estereótipo, como o amigo hétero
ogro e a prostituta de “bom coração“ e compreensiva. José é angelical demais e
o roteirista valeu-se de um trucão pra livrar o caminho de Ander. Tudo isso,
contudo, não compromete a película, que se apoia em boas atuações –
especialmente na de Joxean Bengoetxea, na pele do protagonista – e usa dos
estereótipos de modo parcimonioso e discreto. Assim, temos seres humanos na
tela, com os quais nos importamos, porque não são meras figuras. Quem consegue
conceber felicidades alheias distintas das suas, pode até torcer por Ander e
José.
Ao vê-lo pela segunda vez, captei uma sub-trama que me
interessou mais do que a principal. Ander também pode ser lido como micronarrativa
da globalização, da porosidade das fronteiras (pelo menos de algumas), da
ascensão de novos arranjos familiares em substituição à estrutura patriarcal,
enfim, como testemunho do ocaso dum modo de vida, que, ao ruir, não
necessariamente precisa ser tão lamentado, posto trazer oportunidades mais
substantivas de felicidade individual mediante afrouxamento de certas mordaças
sociais.
O mundo rural do País Basco esgarça-se. Ander tem que
trabalhar numa fábrica pra complementar a renda da propriedade, os jovens
migraram pra cidade e a escassez de mão de obra faz com que a mãe de Ander
tenha que se resignar com a presença indesejada do imigrante latino. O campo já
tem cocaína e gente que curte o ianque jazz. Enfim, o filme é salpicado por
índices de pós-modernidade, de forma discreta como o tom da obra. A
possibilidade que tais aberturas trazem pras liberdades individuais é discutida
pelo drama de Ander, entre ser feliz em sua homossexualidade ou conformar-se
com o papel dele esperado.
A boa qualidade do filme completa-se com um elemento maroto
que perpassa quase toda a narrativa. A história transcorre em 1999,
revestindo-se do simbolismo do novo milênio como deflagrador de uma nova era.
Entretanto, Ander está inquieto com a perspectiva de catástrofe profetizada
pela mídia e tecnólogos. O filme aproveita a palhaçada estúpida ensejada pelo
pânico causado pelo Bug do Milênio e coloca um grama de sal nas perspectivas de
benesses da modernidade, como se dissesse que mudanças são bem vindas, mas não
se deve jogar o bebê fora juntamente com a água do banho. Quanto das antigas
formas de vida precisam ser deixadas de lado com a modernidade?
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