quinta-feira, 22 de setembro de 2011

TELONA QUENTE 32

Carlito esteve em casa durante quase todo o mês de agosto. Um domingo em que preparava postagens pra estocar pra semana ele colocou um filme no DVD. Escolheu um falado em espanhol, Ander (2009). Como o CP fica ao lado do DVD eu ouvia os diálogos. Percebi trechos ininteligíveis, porém. Espiei e vi legendas. Parte do filme era em basco. Segui trabalhando e ouvindo o espanhol. Depois que Carlito se foi, revi Ander pra ler legendas e preencher lacunas. Essa dupla mirada revelou-me 2 filmes diferentes.
Quando (ou)vi pela primeira vez, o filme me contou a história de Ander, 40tão que mora na zona rural do País Bascocom a mãe e a irmã prestes a se casar. Além do sítio, Ander trabalha em uma fábrica. Depois de fraturar a tíbia, a família vê-se obrigada a contratar um ajudante; José, imigrante peruano. A proximidade física e a doçura do estrangeiro despertam em Ander o que estava escondido e não admitido dentro dele. Porém, como se autoaceitar e lidar com um comportamento socialmente reprovado, especialmente no conservador meio campesino? Como Ander responderá a seu desejo homoerótico é do que se ocupa a maior parte do filme, discreto, silencioso e lento.
As personagens tendem ao estereótipo, como o amigo hétero ogro e a prostituta de “bom coração“ e compreensiva. José é angelical demais e o roteirista valeu-se de um trucão pra livrar o caminho de Ander. Tudo isso, contudo, não compromete a película, que se apoia em boas atuações – especialmente na de Joxean Bengoetxea, na pele do protagonista – e usa dos estereótipos de modo parcimonioso e discreto. Assim, temos seres humanos na tela, com os quais nos importamos, porque não são meras figuras. Quem consegue conceber felicidades alheias distintas das suas, pode até torcer por Ander e José.
Ao vê-lo pela segunda vez, captei uma sub-trama que me interessou mais do que a principal. Ander também pode ser lido como micronarrativa da globalização, da porosidade das fronteiras (pelo menos de algumas), da ascensão de novos arranjos familiares em substituição à estrutura patriarcal, enfim, como testemunho do ocaso dum modo de vida, que, ao ruir, não necessariamente precisa ser tão lamentado, posto trazer oportunidades mais substantivas de felicidade individual mediante afrouxamento de certas mordaças sociais.
O mundo rural do País Basco esgarça-se. Ander tem que trabalhar numa fábrica pra complementar a renda da propriedade, os jovens migraram pra cidade e a escassez de mão de obra faz com que a mãe de Ander tenha que se resignar com a presença indesejada do imigrante latino. O campo já tem cocaína e gente que curte o ianque jazz. Enfim, o filme é salpicado por índices de pós-modernidade, de forma discreta como o tom da obra. A possibilidade que tais aberturas trazem pras liberdades individuais é discutida pelo drama de Ander, entre ser feliz em sua homossexualidade ou conformar-se com o papel dele esperado.
A boa qualidade do filme completa-se com um elemento maroto que perpassa quase toda a narrativa. A história transcorre em 1999, revestindo-se do simbolismo do novo milênio como deflagrador de uma nova era. Entretanto, Ander está inquieto com a perspectiva de catástrofe profetizada pela mídia e tecnólogos. O filme aproveita a palhaçada estúpida ensejada pelo pânico causado pelo Bug do Milênio e coloca um grama de sal nas perspectivas de benesses da modernidade, como se dissesse que mudanças são bem vindas, mas não se deve jogar o bebê fora juntamente com a água do banho. Quanto das antigas formas de vida precisam ser deixadas de lado com a modernidade?

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