Neste Finados, escolhi publicar uma profunda
reflexão vital-literária de nosso cronista filosofante.
O RISCO DE VIVER UM POEMA: entre projeto e experiência.
José Carlos Sebe Bom Meihy
(para Lídia Meireles: que nos escreve em versos)
Há um poeta grego que me perturba. Tudo nele fascina: sua história pessoal, as causas enfrentadas e a morte que, como contam, teve como último gesto o desenho de uma circunferência e um enigmático ponto central. O conjunto de sua vivência convida à melhor meditação sobre ser estrangeiro em si mesmo. O nome do artista é Konstantinos Kaváfis, nascido em Alexandria, num Egito que então era cosmopolita e habitado por famílias gregas.
Cresceu na Inglaterra, mas voltou ao seu ponto original, onde morreu pobre. Seu espaço temporal se deu entre 1863 e 1933 e por absorver a cultura do oriente e do ocidente conseguiu transpor argumentos eruditos e os popularizar em 154 poemas lindíssimos, alguns inacabados. Pouco difundido entre nós, seus versos combinam profundidade com lirismo, desafio intelectual com graça histórica. Tudo é muito filosófico como, aliás, se espera de um helênico trovador, sabiamente culto e errante. Entre tantos poemas, um me clama mais: ÍTACA.
Por lógico, trata-se da aventura de Ulisses traduzida para o cotidiano de cada qual, de quantos vivem suas epopéias corriqueiras pautadas nas trilhas mitológicas que trançam lutas, esperanças e, sobretudo, desafios. É tudo muito intenso como, aliás, filosófica deve ser qualquer interpretação da vida que queira fugir do nonsense existencial. Afinal, todos procuramos um porto maravilhoso e os versos indicam esta trilha.
O que me fascina neste poema é a sutileza diferenciadora entre a noção de “projeto” e de “experiência”. Mergulhemos um pouco no sentido dos conceitos. No caso de “projeto” – como projetação – o que vigora é a certeza, a rota exata, planificada e instruída por premeditada e previsível que é. No “projeto”, sabe-se aonde chegar e as surpresas são vencíveis. A garantia do caminho e a não possibilidade de erro presidem. Na “experiência” vige a alternativa da perda constante, do descaminho; o desvio é possível companheiro. Possível e arriscado. Arriscado e inevitável. E como é importante admitir, humanamente, a ronda do erro. Gosto de pensar que somos mortais, medrosos, pequenos frente o mar ameaçador frequentado por gigantes assustadores. A nau proposta por Kaváfis confunde-se com nossos corpos e é tímida, e não ignora os monstros fatais que atormentam vias. Mas, é também um convite irresistível para que saiamos do lugar em busca de recompensas insondáveis. Tenho que insistir no risco e na procura. E no gozo eventualmente achado.
ÍTACA
Konstantinos Kaváfis
(Trad. José Paulo Paes)
Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará, se altivo for teu pensamento,
se sutil emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma, se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir: madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina para aprender,
para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.
O RISCO DE VIVER UM POEMA: entre projeto e experiência.
José Carlos Sebe Bom Meihy
(para Lídia Meireles: que nos escreve em versos)
Há um poeta grego que me perturba. Tudo nele fascina: sua história pessoal, as causas enfrentadas e a morte que, como contam, teve como último gesto o desenho de uma circunferência e um enigmático ponto central. O conjunto de sua vivência convida à melhor meditação sobre ser estrangeiro em si mesmo. O nome do artista é Konstantinos Kaváfis, nascido em Alexandria, num Egito que então era cosmopolita e habitado por famílias gregas.
Cresceu na Inglaterra, mas voltou ao seu ponto original, onde morreu pobre. Seu espaço temporal se deu entre 1863 e 1933 e por absorver a cultura do oriente e do ocidente conseguiu transpor argumentos eruditos e os popularizar em 154 poemas lindíssimos, alguns inacabados. Pouco difundido entre nós, seus versos combinam profundidade com lirismo, desafio intelectual com graça histórica. Tudo é muito filosófico como, aliás, se espera de um helênico trovador, sabiamente culto e errante. Entre tantos poemas, um me clama mais: ÍTACA.
Por lógico, trata-se da aventura de Ulisses traduzida para o cotidiano de cada qual, de quantos vivem suas epopéias corriqueiras pautadas nas trilhas mitológicas que trançam lutas, esperanças e, sobretudo, desafios. É tudo muito intenso como, aliás, filosófica deve ser qualquer interpretação da vida que queira fugir do nonsense existencial. Afinal, todos procuramos um porto maravilhoso e os versos indicam esta trilha.
O que me fascina neste poema é a sutileza diferenciadora entre a noção de “projeto” e de “experiência”. Mergulhemos um pouco no sentido dos conceitos. No caso de “projeto” – como projetação – o que vigora é a certeza, a rota exata, planificada e instruída por premeditada e previsível que é. No “projeto”, sabe-se aonde chegar e as surpresas são vencíveis. A garantia do caminho e a não possibilidade de erro presidem. Na “experiência” vige a alternativa da perda constante, do descaminho; o desvio é possível companheiro. Possível e arriscado. Arriscado e inevitável. E como é importante admitir, humanamente, a ronda do erro. Gosto de pensar que somos mortais, medrosos, pequenos frente o mar ameaçador frequentado por gigantes assustadores. A nau proposta por Kaváfis confunde-se com nossos corpos e é tímida, e não ignora os monstros fatais que atormentam vias. Mas, é também um convite irresistível para que saiamos do lugar em busca de recompensas insondáveis. Tenho que insistir no risco e na procura. E no gozo eventualmente achado.
ÍTACA
Konstantinos Kaváfis
(Trad. José Paulo Paes)
Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará, se altivo for teu pensamento,
se sutil emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma, se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir: madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina para aprender,
para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.
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