A proximidade do Dia da Consciência Negra vem a calhar para
que pensemos em nossa negritude muitas vezes negada e também em nosso papel
como influenciadores na África. Nada como este recentíssimo texto de nosso
cronista-viajante – que o enviou direto de Moçambique – para iniciarmos a
problematização.
O TRISTE ABRASILEIRAMENTO DA ÁFRICA
José Carlos Sebe Bom
Meihy
Para Lourival dos Santos
Já se disse que a compreensão do Brasil não é para principiantes.
Nossa sutil sociedade tramita entre o moderno e o arcaico, entre senis
estruturas e projetos ultra-avançados, de jeito extremado e trôpego. A negação
disso obscurece uma realidade injusta e de crescente vocação opressiva
projetada sobre outros países. Mais: faz com que nos orgulhemos de ser
“emergentes”, modernos, esquecendo-nos de que ainda abrigamos assustadores
extremos mesquinhos e nos hasteamos como exemplo. Basta, contudo, olhar para os
lados e perceber a devoção ao progresso desmedido segundo regras de um
capitalismo que em vez de acelerar aproximações polariza diferenças. Mesmo a
inegável mudança do padrão das camadas pobres se mostra pífia ante as possibilidades
e isso se exacerba quando contemplamos o Brasil fora dos nossos limites
territoriais. Aliás, nem questionamos a ética social dinamizadora do processo
imperial que nos tenta. No correr dos dias em nossa paisagem tropical, sempre intuída
por meio dos comportamentos urbanos, industriais e de mecanização da lavoura
perdemos a visão de conjunto e assim esquecemo-nos do fardo colonial. Com
arrogância desvalemo-nos da busca de identidade latino-americana e o mesmo
ocorre com outros parceiros de processos históricos afins e muito
particularmente com a África.
Sem nos apercebermos da gravidade da submissão que marcou
nosso pretérito, como adoradores infantis, ajoelhamo-nos em frente a
indicadores europeus ou norte-americanos. E nossos referenciais passam a ser as
bolsas de valores estrangeiras e o custo do euro ou do dólar. A perpetuação desse
esquema verticalizado no alinhamento norte-sul nos constrange a admitir a
possibilidade de laços solidários entre países do mesmo hemisfério. É verdade
que nem tudo é tão simples e linear. Temos momentos dialéticos e de crítica,
mas isso quase sempre nos reduz a uma azeda percepção do mundo pobre e, não raro,
os inquietos são legados aos partidos políticos condimentados de insatisfeitos
e rebeldes estranhos à ordem sempre dominante. Mesmo considerando os
malcontentes, o que temos é uma percepção do produto histórico como se os
negros emergidos do processo escravagista fossem apenas rebeldes revoltados e
excluídos em quilombos ou submissos eternizados no silêncio singular da pobreza
em favelas ou guetos. Sem ver a riqueza fabulosa contida naquelas tradições, nossas
percepções identificam a negritude com miséria e assim perdemos a seiva
analítica capaz de nutrir outras leituras.
O Brasil atua no processo global de maneira ambígua ainda
que gigantesca. É, feliz ou infelizmente, inegável nossa força modeladora em
estados africanos. Absolutamente impressionante o vigor assumido por nossa
presença que, alhures, se ergue como padrão desejável. Grosso modo, são três os vieses que nos fazem eleitos de
preferências: o impacto econômico expresso pelas multinacionais brasileiras
ligadas à construção civil, prospecção de petróleo e mineração; os cultos neo-pentencostais
e a televisão. As empreiteiras, além dos lucros dilatados, demandam trânsito de
funcionários que chegam a afetar as estatísticas. No aeroporto de Luanda,
Angola, por exemplo, há atendimento especial para esses funcionários. Em
qualquer recôndito canto de diversas sociedades africanas, os templos da Igreja
Universal e congêneres repontam com número indizível de pobres que, além dos
dízimos, pagam com inexplicável zelo os chamados votos de desejos. Nossas novelas, por sua vez, padronizam valores
ocidentais que são assumidos como arquétipos a serem seguidos atuando em
particular na juventude e na remodelagem de esquemas familiares. A piorar tudo,
as motivações subjetivas que nos fazem exemplo são cruéis. Em particular nos
países de língua portuguesa, o horror ao recente passado colonizador é motivo
de rejeição peremptória e o contrário disto modela o Brasil como espelho a ser
seguido. Nessa ordem, os demais antigos dominantes europeus são demonizados em
nome de uma cultura despótica que legou a todos os estereótipos negativos da
chamada raça negra. Os Estados Unidos
representam o mal e mesmo o esforço de superação do tirânico comunismo não
aliviou refutações. Restou-lhes mesmo o Brasil da suposta democracia racial,
paraíso a ser imitado. E sem saber bem como ou com que critérios, avançamos
avassaladoramente sobre uma África aflita e carente de tudo. Por lógico, resta
ver alguma esperança. Não cabe negar vantagens desse processo, de forma alguma,
mas, rasga-se espaço para reflexões sobre outros ângulos, que não apenas
econômicos, dos contatos. Mais que nunca, estudos dessas culturas merecem ser
saudados como necessários. É verdade que autores africanos como Pepetela, Mia
Couto, Luadino Vieira e José Eduardo Agualusa, entre tantos outros, assumem
importância multiplicadora, mas é necessário muito mais. É preciso estudar a
África. Viajar para aquelas plagas é necessidade, e mais que nada é preciso que
vejamos nossas responsabilidades nessa ordem
e progresso.
Maputo, 3 de novembro de
2011.
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