Às vésperas do Carnaval, nosso cronista-folião
veste fantasia de índio e entrelaça nossa maior festa popular com Veneza, os
arlequinais modernistas de 22 e até com Tom Mix. Isso sim é globalização
antropofágica!
Por diversos motivos tenho intensificado opiniões sobre nosso carnaval com um querido amigo, inquieto norte-americano, Carlos Bakota, ex-professor da Universidade de Indiana, ex- diplomata de carreira e eterno amante do Brasil. A tal ponto esse instigante personagem se interessa por nossa cultura que o chamo carinhosamente de brasilianeiro – mescla de brasilianista e brasileiro. Carlos é um desses tipos curiosos que atualiza a inquietação antropológica da parcela dos bons acadêmicos norte-americanos que buscam conhecer nossa essência cultural e não apenas analisar dados objetivos, diagnosticadores do progresso. E como o tópico que nos ata no momento é o carnaval, devo dizer à guisa de introdução que os comentários que faz exibem laivos dos festivais antropofágicos descritos pelos nossos vanguardistas. Sim, suas opiniões nos servem como alimento de “inimigos” que devoramos para nos fortalecer com a “carne adversa”. O tema da antropofagia, aliás, é boa chave para abrir a caixa de temas que revisamos.
CARNAVAL, desenganos...
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Para
Carlos Bakota e Matt Shirts
Por diversos motivos tenho intensificado opiniões sobre nosso carnaval com um querido amigo, inquieto norte-americano, Carlos Bakota, ex-professor da Universidade de Indiana, ex- diplomata de carreira e eterno amante do Brasil. A tal ponto esse instigante personagem se interessa por nossa cultura que o chamo carinhosamente de brasilianeiro – mescla de brasilianista e brasileiro. Carlos é um desses tipos curiosos que atualiza a inquietação antropológica da parcela dos bons acadêmicos norte-americanos que buscam conhecer nossa essência cultural e não apenas analisar dados objetivos, diagnosticadores do progresso. E como o tópico que nos ata no momento é o carnaval, devo dizer à guisa de introdução que os comentários que faz exibem laivos dos festivais antropofágicos descritos pelos nossos vanguardistas. Sim, suas opiniões nos servem como alimento de “inimigos” que devoramos para nos fortalecer com a “carne adversa”. O tema da antropofagia, aliás, é boa chave para abrir a caixa de temas que revisamos.
Um dos questionamentos mestres do colega diz da
origem indígena do nosso carnaval, ou do “repontamento” mais recente gerado
pela identificação da presença de fantasias de índios. Retomando conversas
amanhecidas, em particular envolvendo um amigo que um dia foi nosso aluno, Matt
Shirts – o mesmo que escreve no Estadão – ambos concluíram que tal presença
poderia derivar da insistência dos modernistas paulistas de 1922 em fundamentar
nossa identidade como se indígena fosse. Na verdade, poucos sabem que a Semana
de Arte Moderna se deu exatamente naquele fevereiro carnavalesco. Mas, ainda
que a evocação aos selvagens brasileiros que teriam devorado o Bispo Sardinha
funcionasse como uma das alegorias, a inspiração carnavalesca prevalecente no
imaginário dos intelectuais era a da festa veneziana, com a sagração do
triângulo colombina, pierrô e arlequim. Vale lembrar, por exemplo, que as
malhas com losangos serviram de cenário para uma proposta que, na realidade,
traía a vocação nacionalista, de valorização do selvagem, que foi se desdobrando
lentamente. Com esse contra- argumento, fica estabelecido o dilema que nos
desafia. Os índios carnavalescos crescentemente alegorizados no carnaval são
frutos dos impulsos dados pelas propostas dos modernistas? Pensemos. O padrão
de fantasias comum é dos Comanches (Apaches e Sioux), ou seja, dos chamados “índios
brancos”. Pouco, quase nada de exaltação à nudez dos nossos. Mas, se a
representação se liga ao imaginário norte-americano, o que pensar da tradição
nacionalista do nosso carnaval? Convém ressaltar que apesar da originalidade e
brilho do modernismo paulistano, ele estava muito longe de atingir as massas. A
Semana de Arte Moderna era revelação isolada promovida pelos “jovens turcos” da
elite paulistana. Considerando a sofisticação dos argumentos, os textos eram
mais destinados ao nivelamento dos manifestos modernistas internacionais, em
particular aos italianos. É verdade que carnavalescos como Fernando Pamplona
exploraram temas como “O descobrimento do Brasil”, mas a mostra era muito mais devotada
ao padrão europeu, com corte, desbravadores, religiosos, do que com os próprios
índios. Mas, então, como teria começado essa “tradição” do índio Comanche no
Brasil? A hipótese que levanto corre por conta do sucesso do cinema, em
particular dos filmes de cowboy. Ainda que pouco notadas, as fantasias de
“mocinho” também compõem representações carnavalescas, mas há um filme que
merece atenção, não apenas pelo sucesso de público: “Mr. Mix at the Mardi Gras”
com o prestigiado ator, popularíssimo no Brasil, (inclusive citado no sítio do
Pica-pau-amarelo e em músicas recentes como “Berenice” de Jorge Bem Jor). É
incrível supor que Tom Mix seja responsável por uma das relações mais
estapafúrdias da troca de cultura entre o Brasil e os Estados Unidos, mas não
resisto aproximar o Mardi Gras de New Orleans ao carnaval brasileiro. E tudo
pelo cinema.
Mas, minhas conversas com Carlos e Matt também
tangem outros aspectos, e entre eles a mitificação romântica do financiamento
das Escolas de Samba. Consagrando o princípio que “o pobre trabalha o ano
inteiro, pra vestir a fantasia de rei, pirata ou jardineira” (Vinicius e
Jobim), muitos ainda acreditam que escola de samba é uma abstração do
capitalismo. É preciso gritar que tais agremiações dependem de quatro fontes de
financiamentos: 1- patronos, banqueiros do Jogo do Bicho; 2- ajuda do estado
(prefeitura do Rio de Janeiro); patrocínio de cidades, estados, países (este
ano, por exemplo, Angola está financiando grande parte do desfile do GRESS Vila
Izabel), e, 4- da participação de “pessoas de fora”, ou turistas e
personalidades individuais que financiam suas fantasias de luxo. O bom de tudo
é que esse tipo de diálogo carnavaliza o debate cultural e mais que tudo nos
faz refém da alegria de discutir aspectos pouco valorizados no debate sobre
nossa identidade. E como é bom pensar a globalização carnavalizada...
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