Rendendo-me
momentaneamente ao truísmo que reza que no Brasil o ano começa só após o
Carnaval, selecionei um texto de nosso cronista-filosofal, onde ele responde à
questão “professor, na sua vida faria
tudo do mesmo jeito?”
Devo
dizer que era um fim de tarde, um quase anoitecer desses em que o não frio se
disfarça em não calor e tudo fica incerto. Sentei-me, troquei o olhar para fora,
buscando no interior ver o essencial. Fiquei surpreso com a rapidez da
resposta. E logo fui me sentenciando favoravelmente. Acho que acertei muito.
Fiz muitas coisas dignas de saudação pessoal. Mesmo delegando aos outros direitos
de opiniões diversas, creio que acertei como pai, fui bom marido, fiz
excelentes amigos, profissionalmente fui sucedido com algum sucesso e, creio,
deixo um legado que não envergonhará minha memória. Mesmo assim, creio que não
repetiria algumas coisas. Na altura dos tempos, tenho concluído que perdi muito
tempo com alguns detalhes tolos, deixei de elogiar ou reconhecer méritos
devidos a alguns parceiros, chorei demais algumas perdas pífias e demorei-me
muito em outras que não deixo calar. Talvez tenha sido muito severo com os
filhos na primeira infância e agido com muito rigor com alunos que precisavam
de tempo para expressar seu melhor. Mas,
nada que me convidasse à negação. Para mim mesmo, desdobrei a questão: o
que aprendi da vida? Meio que companheiro de mim mesmo, como uma espécie de
anjo clemente, me vieram alguns sentimentos que procurei cultivar com zelo
extremo: não guardar mágoas; saber que tudo pode ser dito desde que de forma
adequada; ter capacidade de pedir perdão se necessário e sobretudo negociar
diferenças. Estava nesse ponto quando fui virado pelo avesso e de fora. Vez
mais, aflorou um verso que se pôs em lugar de canções. Foi Fernando Pessoa quem,
como colocando a mão em meu ombro, disse: tudo
vale a pena se a alma não é pequena.
COMEÇAR DE NOVO?
José Carlos Sebe Bom
Meihy
Dizem que são as
perguntas que movem o mundo, e não as respostas. Há sabedoria nisso, com
certeza. Mas, questões podem nos perturbar. Muito. Lembro-me que na juventude,
frente às primeiras namoradinhas, eu sempre começava qualquer encontro com uma
chuva de perguntas. Era um jeito de disfarçar a timidez e provocar reações, mas
nem sempre dava certo. Era essa uma estratégia diferente dos amigos que encantavam
as garotas com elogios diversos, decantando belezas às vezes inexistentes, que
poderiam recair no rosto, jeito de dançar, cabelo, sorriso. Isso, porém, não
funcionava comigo. Antes de tomar qualquer iniciativa eu punha a cabeça para
funcionar e elaborava diálogos que, contudo, nunca se realizavam do jeito que
supunha. Estava sempre fadado ao insucesso galanteador. Na minha cabeça a coisa
funcionava mais ou menos assim: imaginava uma pergunta inicial e esperava que
as respostas viessem nas poucas alternativas que eu elaborava. Como raramente acertava,
não conseguia substituir o plano por outros. Pois bem, essas recordações me
vieram à cabeça quando alguém pouco dado à censura lançou a sentença: professor, na sua vida faria tudo do mesmo
jeito? Gelei. Na realidade, não precisava dar uma resposta fiel, dizer algo
definitivo, expressar exegeses ontológicas. Mas, a surpresa abriu um buraco em
minha perplexidade. Sabe como reagi? Apelei para a MPB e ressuscitei
Gonzaguinha balbuciando um trecho de “Começaria tudo outra vez”, carro-chefe de
seu primeiro álbum, de 1977: “Começaria tudo outra vez, se preciso
fosse meu amor/ A chama no meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão”.
Dei uma manhosa pulada no teor romântico e recobrei a parte, digamos, civil que
me interessava “e então eu cantaria a
noite inteira/ Como eu já cantei e cantarei/ As coisas todas que já tive, tenho
e sei que um dia terei/ A fé no que virá e a alegria de poder olhar pra trás”.
Com chave de ouro, já sem cantarolar, cravei: “começaria tudo outra vez”. Como peste ameaçadora, no entanto, a
pergunta foi impregnando minha alma e convocando o meu “eu caçador de mim”, como se um Milton Nascimento cantasse dentro de
mim. Logo me veio à mente outra música, esta provocando diálogo inverso. Dessa
feita, era Ivan Lins cantando a superação de tramas, sem o que não valeria a
experiência. Novamente, abdiquei o sentido amoroso e no lugar insisti no
sentido existencial das palavras que diziam “Começar de novo e contar comigo/ Vai valer a pena
ter amanhecido/ Ter me rebelado, ter me debatido/ Ter me machucado, ter
sobrevivido/ Ter virado a mesa, ter me conhecido/ Ter virado o barco, ter me
socorrido/ Começar de novo e só contar comigo”. Alinhei
outras canções até o ponto de responder que deveria buscar meu próprio exame,
pois, afinal, faria tudo outra vez?
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