quarta-feira, 7 de março de 2012

CONTANDO A VIDA 71

Nosso cronista está chocado com a atitude dos lutadores do UFC, e faz uma comparação entre a atitude perante a vitória dos boxeadores e a dos índios em seu quarup.
Diferentemente do professor Sebe, adoro estar fora do grupo majoritário e jamais ouvira falar em UFC!

DUAS LUTAS: o Boxe e o Quarup...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Com o pomposo nome de Ultimate Figthing Championship – UFC – o maior acontecimento de boxe do mundo ocorreu no Brasil, no final de agosto último. Alardeado como “evento que promete incendiar a noite”, fazendo a sanha de mais de 15 mil assistentes diretos e transmitido, via TV, para cerca de 150 países, o esporte que mais cresce no mundo e com fervorosa torcida feminina me surpreende, choca e desaponta. Sendo que as três maiores personalidades dessa modalidade são patrícios, tudo foi anunciado de maneira a convocar a torcida para “defender as cores do Brasil”. Como poucas vezes na vida, me senti voluntariamente fora do grupo majoritário. Não consigo gostar de enfrentamentos físicos, muito menos com violência. Não mesmo. Os três nomes consagrados como heróis são Anderson Silva, Rodrigo Minotauro e Maurício Shogun. Todos têm cara de maus e se dizem bonzinhos. A favor da reputação da luta como esporte, falam de disciplina, método de controle muscular e conhecimento das artimanhas do adversário. Tudo combinando velocidade nos ataques, equilíbrio nos pés e jogo de corpo. Prontos para derrubar o outro, visto como inimigo, o discurso desses “atletas” é perturbador. Os detalhes implicam admitir a teatralidade do espetáculo e para tanto o planejamento detalhado, desde a entrada no ringue, é parte do show cuidadosamente montado. Todos insistem na cara de raiva que deve amedrontar o adversário e motivar a torcida ávida pela derrota massacrante do oponente. Na mesma ordem, o nocaute deve ser buscado como garantia máxima do sucesso, mas há controvérsias sobre o momento do abate, que pode demorar, e assim, exigir até a última fibra da torcida. Uns acham que a vitória precisa ser rápida, outros apregoam cansaço dos oponentes. Todos, porém, querem agradar o público que, quanto mais enlouquecido, melhor.
Na internet, é encontrada uma série de vídeos de lutas. Caras arrebentadas, delírio público de apostadores, raiva estampada em ares vitoriosos. Um desses vídeos me chamou a atenção, pois taxava um brutal confronto como “combate épico”, falava da “luta do século” e “confronto de deuses”. Chocado, assisti à sequência do encontro que tinha o auge no formidável chute dado por Anderson Silva no rosto do adversário, também brasileiro, Vitor Belfort. Estirado no chão, sob vaias e aplauso, o derrotado continua sendo chutado. Tudo em nome do esporte.  
Meditando sobre essas coisas, me veio à mente a lembrança de um dos mais marcantes livros de história de leitor. Antonio Callado escreveu Quarup em 1967, na fase de definição da ditadura militar. O livro conta a história de um padre pernambucano, Nando, que depois deixou a batina e se torna libertino e acaba por ingressar na luta armada. O enredo absolutamente envolvente se passa entre 1954 e 1964. O religioso, utópico sonhador das transformações do país, queria fundar uma reserva indígena na Amazônia, onde a ordem natural seria motivadora de convívio comunitário pleno. Perseguindo este ideal, o religioso dirige-se à então capital, Rio de Janeiro, e lá depara-se com corrupção, distorção de costumes, vícios. De volta ao Xingu, chega exatamente no momento da realização do imponente ritual do Quarup, que implica celebração dos mortos. Os índios, no lugar de lamentações, promovem uma festa e um dos pontos altos é o confronto de homens fortes. O fantástico desse embate é o respeito que os adversários devem ter um em relação ao outro. Vencer sim, sem, contudo, vexar, expor ou humilhar o adversário. A imponência do vitorioso, no caso dos índios aludidos, impõe o respeito ao derrotado que não deve ser derrubado ou ferido de maneira a se machucar. Dignidade.
Fico comparando atitudes dessas duas modalidades de lutas. Por certo, na sociedade capitalista o sentido do confronto é metáfora perfeita do poder capaz de definir vencedores. Não é sem motivo que os créditos dados aos bem sucedidos vêm fatalmente enfeitados por expressões como “campeão”, “herói”, “vencedor”, “lutador implacável”. Nada contra. Em absoluto. O que me é difícil aceitar é a ostentação da vitória e a exclusão dos vencidos. O personagem Nando, o padre do livro de Callado, foi tido como sonhador de um mundo impossível de reversão. Opondo cidade e selva, a insatisfação do moço leva-o ao delírio sexual exacerbado e à luta revolucionária. Tudo sem saída, como que a dizer que não há mais lugar para lutadores que não se vangloriem da derrota do outro. 

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