O moçambicano Mia Couto é um dos expoentes da literatura
africana contemporânea. Semana passada, o literato deu a aula inagural pra
turma de Comunicação e Artes na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Em um
discurso corajoso, incisivo e sobretudo, encorajdor, Couto falou do papel do educador, preconceito, racismo, machismo, Nelson Mandela, o poder da arte e,
especialmente, o perigo de se acostumar com as injustiças, achando-as “normais”.
Para nós albinos e não-albinos, uma parte especial do
texto (destacada em vermelho), onde Mia conta um fato que prova que o outro –
que por vezes desprezamos – está dentro de nós, em potência.
Agradeço imenso ao colega João Adalberto Campato Júnior
pelo envio do texto, que é longo, mas, prometo, recompensador.
Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade
Mia Couto
Quero, antes de mais,
saudar os professores.
Durante anos, fui
professor. E quando digo isto há uma emoção fortíssima que me atravessa. Eu não
sei se há profissão mais nobre do que a de ensinar. E digo ensinar porque
existe uma diferença sensível entre ensinar e dar aulas. O professor no sentido
de mestre é aquele que dá lições.
Os professores que
mais me marcaram na vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para
além da matéria escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que
um dia leu, comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua
intenção nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações,
nós é que as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem
grande se sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que
só faz quem ainda está a aprender?
Lembro-me como se
fosse hoje: o professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu
ao estrado da sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era
como se ele se transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de
provas. Parecia um mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia
salvar.
Depois, quando
anunciou o título da redação veio a surpresa do tema que parecia quase
infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe. Éramos crianças e
estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto dele) partilhasse
connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi bem mais do
que um espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia falar da minha
própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos marcadas pelo trabalho,
enrugadas pela dureza da vida, sem nunca conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético.
No final, o texto acabava sem nenhum artifício, sem nenhuma construção
literária. Simplesmente, terminava assim, e eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que
me orgulho tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão
lembrar o carinho do teu eterno gesto.”
Havia qualquer coisa
de profundamente verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o
demarcava dos outros textos do manual escolar. É que não surgia ali, em
destacado, uma conclusão moral afixada como uma grande proclamação, uma espécie
de bandeira hasteada. Aquele momento não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu
do mesmo modo como vivemos as coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que
estamos aprendendo. Lembro este episódio como uma homenagem a todos os
professores, a esses abnegados trabalhadores que todos os dias entregam tanto
ao futuro deste país.
Comecei por saudar os
professores. Parece que me esqueci dos estudantes. Ou que os coloquei em
segundo plano. Mas não.
Todos somos
professores, mesmo que não o saibamos. Perante os outros, perante os nossos pais,
perante os amigos, perante nós mesmos, com bons ou maus exemplos, com tristes
ou gratificantes lições, todos somos professores. Um dos maiores professores do
nosso tempo é um homem que nunca deu aulas. É um homem que ensinou a sermos
mais humanos. Mais do que isso, é um homem que ensinou a ter esperança num
mundo tão desesperançado. Esse professor de toda a humanidade, de todas as raças
e credos, é um africano. Chama-se Nelson Mandela. A sua vida foi uma
interminável lição. Mandela é hoje uma bandeira mundial não apenas porque foi
um político que dignificou a política, mas porque nos dignificou a todos nós,
seres humanos.
Deixem-me falar de
Mandela. Este homem, que agora está doente e cansado, viveu encarcerado durante
vinte e sete anos. Vinte e sete anos são mais do que o tempo de vida da maior
parte dos presentes nesta sala. Vinte e sete anos de prisão é tempo suficiente
para criar raiva, ódio e insuperáveis ressentimentos. Contudo, este homem
converteu esse potencial negativo em força construtiva e reconciliadora. Um dos
motivos de inspiração de Mandela foi encontrado num poema que se chama “Invictus”.
Vou ler esse poema.
Do ventre da noite que tudo cobre
Negra como o fundo da cova escura
Agradeço aos deuses de todos os céus
Por quanto a minha invencível alma perdura
Ante as garras do cruel acaso
Nem eu tremi, nem o medo me turvou
Sob o peso da ameaça e da desumana violência
Eu sangrei, mas a minha alma nunca se curvou
Não importa se a passagem é estreita
Não importa quantos castigos devo penar
Eu sou o dono do meu destino
Eu sou o capitão da minha alma.
Estes versos, meus
amigos, foram uma espécie de suporte moral que deram força a Nelson Mandela.
Vezes infinitas o prisioneiro 46664 da Ilha de Robin regressou a estes versos
para não sucumbir. Como escritor e poeta, dá-me grande alegria saber deste
poder da poesia. Neste caso, há qualquer coisa que deve ser acrescentada.
Na verdade, este
poema foi escrito em 1875. O seu autor não foi um poeta sul-africano, não foi
sequer um poeta africano. Quem escreveu estes versos foi um britânico chamado
William Ernest Henley. Estes versos viajaram para além de séculos e continentes
e iluminaram a esperança de um homem que, em vez de se vitimizar e procurar a
vingança, nos deu uma eterna lição da crença nos outros.
Eu venho falar para a
Escola de Comunicação e Artes. Por isso me demorei nestes episódios. Porque
acredito que a comunicação e a arte são ferramentas de mudança tão importantes
como a política. Mandela fez da política um instrumento de comunicação da verdade.
Ele fez da política uma obra na arte da reconciliação, numa nação dividida pelo
preconceito. Talvez a cultura seja o mais poderoso e duradouro instrumento de
intervenção social. No nosso continente isso é bem claro. Vejamos um exemplo:
Desde há 50 anos, quando
começaram a acontecer as independências, o nosso continente conheceu mais de
210 presidentes. O desafio que vos faço é o seguinte: digam o nome de 10
(apenas 10) destes dirigentes que se tenham notabilizado como figuras humanas
de referência. Terão dificuldade. Será muito mais fácil enumerarmos artistas e
intelectuais dignos de serem lembrados. E é aqui que a figura de Mandela é tão
importante para nós, africanos. Podemos não nos lembrar de muitos políticos
africanos que nos dignifiquem. Mas o nome de Mandela basta para compensar toda
essa ausência e devolver o orgulho de sermos quem somos.
Caros amigos, vou
entrar agora no tema central desta alocução.
Todos os dias,
centenas de chapas de caixa aberta transitam por esta cidade que parece
afastar-se do seu próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e
solidária”. Cada um destes “chapas” circula superlotado com dezenas de pessoas
que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um
meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a
dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa
forma de transporte é aceitável. Quem se transporta assim são animais. Não são
pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós esse atentado contra
o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas
aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De
tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos, aquilo que era
errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser
uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a
maneira moçambicana.” Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco
dignos de ser respeitados.
O caso dos chapas é
apenas um exemplo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção
do inevitável”. E é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de
ser visíveis. Na nossa sociedade essas pessoas já contavam pouco. É gente
pobre, gente sem rosto, gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá
no jornal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um
simples número para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras
coisas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a
visibilidade os carros de luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os
“chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.
O assunto que
quero abordar convosco hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna
invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza
e faz paralisar a
história. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza, mas
regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto
sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida.
Estamos perante uma espécie
de formatação mental e moral. A mensagem é a seguinte: querem dizer-nos que
nossas doenças sociais são incuráveis. Resta-nos viver de remendos e
expedientes.
Visitou-me um escritor
amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me de Pemba. A
primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado!
Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a
mim. Principalmente porque esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o
maior produtor de petróleo de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria
– depois de 50 anos de exportação de petróleo - é que as cidades nigerianas não
possuem aquilo que para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As
bombas de combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é
vendida em garrafas e jerricans nos passeios públicos. Para alguns esse é um
processo natural em África. Mas não é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo
subsidiou os preços dos combustíveis, mas não foram os mais desfavorecidos que
lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana que se apoderou dos circuitos
formais e desviou para os mecanismos informais a distribuição e venda do
combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda mais ricos. Mas não é a
questão politica que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da
Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue, se tornou normal. Ver bombas de gasolina a funcionar
numa nação bem mais pobre como é Moçambique foi, para ele, um motivo de
surpresa. Eu vejo muitos africanos proclamarem que os mercados informais são a
única maneira que África sabe fazer comércio. Que apenas nas barracas sabemos
comer e beber. É mentira. A dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida
para fugir dos impostos, para escapar das obrigações para com o património
público. Quando o meu amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte:
- A minha surpresa não foi tanto o que eu vi
em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria.
O principal aliado
dos tiranos é a cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês saibam que sou um
dos autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprovação na
Assembleia da Republica, nós não podíamos imaginar que alguns deputados se
sentissem incomodados com a passagem da letra que diz: Nenhum tirano nos irá
escravizar. É claro que a letra não fala do presente. Mas, um hino é feito para
durar. E quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a nossa
futura história? O melhor modo de prevenir esse risco não é apenas consolidar a
democracia política. É investir numa cultura viva, numa cidadania de construção
do futuro. O que me interessa falar aqui, numa Escola de Arte e Cultura é a
dimensão cultural das nossas pequenas e grandes misérias.
A invocação da chamada
“africanidade” é uma das armadilhas mais usadas pelos tiranos. No Malawi,
atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo simples facto de andarem de
calças. Mulheres de calças não é uma coisa africana – foi o que invocaram os
agressores. Em nome de África, se agrediram e mataram pessoas apenas porque
eram homossexuais. Em nome da pureza africana, se continua a impedir que,
apenas por serem do sexo feminino, milhares de crianças não prossigam os seus
estudos. Em nome de África, se cometem os maiores crimes contra África. O nosso
continente é feito de passado e tradição, sim. Mas é feito de modernidade. É
feito de mudança. Como todos os outros continentes.
As dinâmicas de
mudança confrontam-se com uma identidade feita de passado e tradição. Tudo isto
tem a ver com o processo da construção do inevitável. Esse processo envolve o
mecanismo da acomodação e o mecanismo da invisibilidade. A acomodação tem
várias facetas. Sabemos que está errado, mas nada fazemos. Porque temos medo.
Porque achamos que não tem a ver connosco. Ou porque fazemos cálculos. É melhor
calar e ser promovido. É melhor recolher uns magros favores em troca do nosso
silêncio e da nossa cumplicidade.
O mecanismo da
invisibilidade foi tratado por José Saramago no livro O ensaio sobre a cegueira. Nós estamos doentes, não porque os olhos
tenham alguma deficiência, mas porque deixamos de saber olhar. Deixamos de querer
ver. E deixamos de nos ver a nós mesmos. No fundo, este é o desfecho desse
processo de alienação. Tornamo-nos cegos. Quem não vê, aceita que outros lhe
digam como é o mundo.
Eu rabisquei uma
lista de fenómenos sociais que se tornaram invisíveis em Moçambique. A lista é bem
extensa. Mencionarei apenas de alguns.
A violência contra os mais fracos
O primeiro desses
fenómenos é a violência. Dizemos com frequência que somos um povo pacífico. Isso
é verdade. Mas, os povos todos do mundo são pacíficos por natureza. O que muda
é a sua história. Assim, é verdade que somos um povo pacífico, mas também é
verdade que foi esse povo pacífico que fez uma guerra civil que matou cerca de
um milhão de pessoas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a mais
importante da nossa história recente, depois da Independência Nacional. Terminou
o conflito militar, mas não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e
perversas.
Hoje somos uma
sociedade em guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais
fracos. Estamos em conflito com as mulheres, com as crianças, com os velhos,
estamos em guerra com os pobres, com aqueles que não têm poder. Somos uma
sociedade obcecada pelo Poder. Quem não tem poder é como quem circula na
traseira do chapa: não existe. Tudo tem uma leitura política, o mais pequeno
detalhe é um recado, uma definição de hierarquias. Quem chega primeiro à
reunião, onde se senta, quem não comparece à cerimónia, com que carro chegou, de
quem se faz acompanhar, tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de
patrão, sou chamado de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal
de Poder. O vendedor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu
queria comprar. Deixe que escolho um carro compatível com o seu estatuto.
Estamos em guerra
connosco mesmos e o primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as
mulheres. Em Moçambique há mais um milhão de mulheres que homens. Mas, ao nível
das percepções, os homens dão pouca importância a essa verdade. Eles são
chefes, os donos, e olham as mulheres como uma pertença privada. As mulheres,
por outro lado, ainda pedem licença para existir. A maioria das mulheres que
são objecto de violência dos maridos acha que isso não é um crime. Acham
normal, acham natural. Ser agredida faz parte do seu destino, da sua imutável natureza.
E conto-vos três
episódios reais, que retirei da nossa imprensa apenas nas últimas semanas:
Em Cabo Delgado, 17 homens violaram
uma mulher que se atreveu a atravessar o acampamento onde se praticavam os
rituais de iniciação. Da parte das autoridades locais houve uma inaceitável
passividade. Foi necessária insistência da família e de ONGs para que houvesse
uma insuficiente resposta.
Em Manica, dois jovens violam sexualmente
uma mulher no sétimo mês da gravidez.
Em Tete, um homem
mata a criança de dois meses e esfaqueia gravemente a mulher porque a meio do dia
ele chegou a casa e a mulher recusou fazer sexo com ele. O jornalista da
televisão que entrevista o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do
ato ao perguntar: “o senhor devia estar necessitado não é verdade?”.
Reclamamos a
violência da rua, mas é mais provável uma mulher ser agredida dentro de casa do
que fora de casa. É mais provável uma criança ser agredida e violentada no
espaço da sua família. Esta tendência não sucede apenas em Moçambique, mas no
mundo. As estatísticas são reveladoras e assustadoras: cerca de 70 por cento
dos actos de violência contra a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60 por
cento dos assassinatos de mulheres são cometidos pelos seus companheiros ou ex-companheiros.
Em todo o mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou
violentada. Não é, pois, Moçambique que é afectado de modo particular. O que
sucede é que para nós essa violência é legitimada por razões que se dizem
culturais. Nós ainda banalizamos muito facilmente. É ainda prevalecente a ideia
de que a mulher é que é culpada, porque ela é quem provoca a violência. Ainda
achamos que este assunto não tem a ver connosco, que é para ser denunciado
pelas ONGs. Isto é, desresponsabilizamo-nos. Mesmo sendo mulheres, achamos que
este assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs e
filhas, achamos que isto não tem nada a ver connosco.
OUTRA GUERRA - AS
VIUVAS
Sugiro que leiam o livro
de Fabrício Sabat, chamado As viúvas da
minha terra, para ficarem com uma ideia do crime generalizado que é
cometido contra mulheres que vivem um momento dramático da sua vida. E nesse
exacto momento de fragilidade, são assaltadas pelos próprios parentes. Levam-lhes
os bens, os filhos, o sossego.
CASO DAS VELHAS
Acusadas de
feitiçaria, roubaram-nas durante a vida, fizeram sumir a sua infância e juventude
e, no final, roubaram a possibilidade de uma velhice tranquila, usufruída com
os netos e as lembranças. Está longínqua a imagem de África como um lugar especial
porque os velhos são respeitados.
GUERRA CONTRA OS GAYS E AS LÉSBICAS
Moçambique nem é dos países menos
tolerantes. Há países que consideram formal e legalmente um crime o simples
facto de ser ter uma orientação sexual diferente. Mesmo assim, há entre nós, uma
enorme intolerância.
CASO DOS DOENTES MENTAIS
Nós estamos tão
ocupados com outras doenças que esquecemos que não é apenas o HIV SIDA que tem
implicações do ponto de vista do estigma social. As doenças mentais são outro
mal não visível. Não creio que existam estatísticas da prevalência de doenças
mentais em Moçambique. Mas, a média em África é de 14 por cento da população.
ALBINOS
Vou contar-vos um
episódio real. Conheci um pedreiro que chamarei apenas por Fabião, que certa
vez executou uma obra para minha casa. Um dia, uma moça albina veio à minha
porta pedir água. O pedreiro desceu do escadote onde trabalhava para me dar
conselhos: “é melhor não dar, ou usar um copo que depois deita fora”. Quando
lhe perguntei porque, ele respondeu: “aquela tjidajna é alguém que tem muitos
problemas”. E reproduziu os habituais mitos e preconceitos sobre os albinos. No
final confessou: “ainda bem que na minha família nós não temos disso».
Passaram-se anos e a
semana passada o mesmo Fabião ligou para mim a perguntar se era possível entrar
sem convite na exposição “Filhos da Lua”, na Fortaleza de Maputo. Ele ouviu na
rádio que a exposição tinha por tema “os albinos” e estava muito interessado em
levar a sua filha a esse evento. “É que a minha filha nasceu albina.” Fabião
não podia nunca imaginar ser pai de uma tjidjana. Mas foi. E ele agora, por
amor a essa menina, queria enfrentar junto com ela os preconceitos que ele
mesmo guardava dentro de si. Chamei Fabião e ofereci-lhe que levasse para a sua
filha dois discos. Um de Salif Keita, outro do nosso Aly Fake. E disse “esses
são os melhores copos de água. Refrescam a alma”.
Muitas vezes,
pensamos que essas diferenças vivem fora de nós. A diferença está dentro de
nós. Um em cada 35 moçambicanos é portador do gene do albinismo. Um em cada 35
pessoas é portador dessa gente. Nenhum de nós sabe à partida se poderá ser pai
ou mãe de uma criança albina.
GUERRA COM OS MORTOS
Até aqui falei de
conflitos com mulheres, crianças, velhos. Mas, todos esses segmentos sociais
são compostos por gente viva. O mais triste é que a nossa sociedade entrou em
guerra com os seus próprios mortos. Este é o sintoma mais grave da nossa
patologia social: passamos a maltratar até os nossos mortos. O que acontece nos
nossos cemitérios é um atentado contra os mais básicos princípios morais. As
famílias enterram os seus entes queridos e são obrigadas a retirar o mais
ínfimo valor que acompanhe o falecido. Sabem que no dia seguinte o caixão foi
assaltado, o morto foi despido. As próprias jarras de flores são quebradas
antes de serem colocadas, para prevenir que sejam roubadas e vendidas. Não
contentes em assaltarem os vivos, há gangs que se especializaram em roubar os
mortos. Nem depois do último suspiro estaremos a salvo dos ladrões.
Meus amigos
Eu disse que
estávamos em guerra connosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas
violências. A violência daqueles que agridem. E a violência dos que se calam.
Martin Luther King disse: “O que me
entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.”
A lista das nossas
guerras domésticas estende-se por mais domínios. Os exemplos que escolhi
ilustram o facto de que não somos a sociedade pacificada que pretendíamos ser.
Há um percurso enorme a percorrer e esse caminho é, sobretudo, uma viagem
interior. Essa viagem só acontecerá se vocês souberem ver, souberem não
aceitar. Tudo o que aqui disse pode ser resumido em dois textos pequenos de
autores alemães. Peço-vos que escutem. O primeiro é uma parábola e diz o
seguinte:
“Um dia, vieram e levaram o
meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia
seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou
comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram o meu vizinho
católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e
levaram-me mim. Nessa altura, já não havia mais ninguém para reclamar.”
O
segundo texto é um apelo na forma de verso, escrito pelo dramaturgo Bertolt
Brecht:
"Nós
pedimos-vos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural.
Diante das barbaridades de cada dia,
Numa época em que corre sangue
Num tempo em que a arbitrariedade tem força de lei,
Num momento em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
Se aceitamos as coisas como naturais
Nunca digam - Isso é natural.
Diante das barbaridades de cada dia,
Numa época em que corre sangue
Num tempo em que a arbitrariedade tem força de lei,
Num momento em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
Se aceitamos as coisas como naturais
este
nosso mundo torna-se imutável
Caros
amigos
O
nosso tempo também está em guerra contra os jovens. À nossa frente, e não falo
apenas de Moçambique, se anunciam tempos difíceis. À nossa frente, está um
futuro magro em que parece que apenas alguns podem caber. O que nos sugerem é
que briguemos uns com outros para ver quem cabe nessa estreita porta. Mas,
talvez seja possível criar um outro futuro mais amplo.
Vão ser assediados.
Por forças políticas que estão mais preocupadas com o Poder do que com a resolução
efectiva dos problemas. Por forças que se lembram dos jovens quando se trata de
colher votos. Por forças que falam aos jovens, não falam com os jovens.
Vocês são jovens. Ser
jovens é uma condição inerente, que se exerce sem esforço. Mais do que jovens,
sejam diferentes. Tragam para o nosso tempo o inesperado, o que é novo, o que é
historicamente produtivo.
Uma nova classe está
povoando o poder político em Moçambique. São os papagaios. Reproduzem o
discurso dos chefes. A maior parte deles são jovens. Mas, são jovens de alma
envelhecida. Os papagaios podem pensar que o seu futuro está assegurado porque
olham o país como se fosse um aviário. Mas, o nosso futuro como nação não se
constrói senão com ousadia, com vitalidade e um infinito respeito pelos outros.
Ficamos muitas vezes
à espera, ficamos à espera que o governo faça. Temos medo de tomar iniciativa.
Achamos arriscado. Não agimos porque dizemos que faltam recursos, falta
orçamento, falta autorização do chefe. Mas, existem lições que parecendo
pequenas podem tocar alguém para toda a vida.
O professor primário
que leu uma redação sobre as mãos calejadas de sua mãe não imaginava que
estaria marcando para sempre um aluno seu. O poeta William Henley não poderia
imaginar que versos seus poderiam sustentar, cem anos mais tarde, a vontade de
lutar de um africano que iria mudar o destino de milhões de pessoas.
Fazemos o que fazemos
não porque sejam grandiosas iniciativas, mas porque necessitamos mudar as
coisas e melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos porque, como diz o poema, nós
queremos ser donos do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva.
Excelente!
ResponderExcluirEmocionante!
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