Luciana
Gonçalez decidiu dividir um pouco de suas experiências albinas conosco e
escreveu um texto muito sincero e generoso. Não se preocupe que não ficou nada
brega, Luciana!
Nasci
albina (claro, rs), mas demorei bastante para entender o que isso significava.
Nem lembro de verdade quando ou como foi. Acho que foi aos poucos... Uma
informação aqui, uma observação ali, uma constatação acolá e o cenário sendo
desvendado em capítulos.
Embora
meu pai e seus dois irmãos fossem albinos, o assunto albinismo sempre foi
tratado com desconforto e na surdina pela nossa família. Não se sabe se antes
de meu pai e meus tios houve algum caso de albinismo entre os familiares. Desconfio
que meu bisavô fosse albino, já que meus pais se lembram de que ele era muito
loiro, muito branco, com a cara muito vermelha e de olhos azuis. Entretanto,
como nossa descendência é toda europeia, fica difícil saber se ele era albino mesmo
ou apenas loiro...
O que sei
é que meu pai e seus irmãos foram ensinados - inclusive por esse meu bisavô
possivelmente albino - por meio de piadinhas jocosas ou comentários
inapropriados, a verem o albinismo como uma característica ruim e a tentarem
“dissimulá-lo”, negá-lo, ignorá-lo.
Apesar
disso – e até hoje não entendi porque -, meu pai se casou com uma prima de 1º
grau, o que tornava muito elevada a chance de gerarem filhos albinos. Minha mãe
nunca se importou com isso, em parte porque ela é de fato uma pessoa sem
qualquer tipo de preconceito e em parte, creio eu, porque até hoje não
compreende bem o grau de nossas dificuldades.
Mas, meu
pai, por ter – perdoem a piadinha – sentido na pele o que é ser um albino,
especialmente nas circunstâncias em que foi criado, não queria ter um filho
albino. E hoje o compreendo, embora não concorde, e sei que isso não tem nada a
ver com ele me amar. O problema é que minha mãe, acho que para se vangloriar de
ser menos preconceituosa do que ele – ou para insinuar que me amava mais – me
contou isso quando eu ainda era criança e repetiu inúmeras vezes. Imaginem que
beleza saber que meu pai e meus familiares próximos não queriam que nascesse
mais um albino...
Foi
encarando o albinismo sob essa perspectiva que cresci. E, tirando o uso de
prrotetor solar, cresci também sem nenhum acompanhamento especial, ótico,
ortóptico, dermatológico ou psicológico. Nenhum professor meu jamais foi
orientado de que eu precisava de auxílios óticos pois era deficiente visual.
Nem mesmo eu fui... Segui minha infância e minha adolescência me virando
sozinha para estudar, sem jamais ter enxergado a lousa, mesmo sentada na
primeira carteira. Tinha que me virar com
minhas dificuldades, pois não era correto expô-las.
Quando
era criança me levantava e ia olhar o que estava escrito no quadro, depois
voltava, sentava na carteira e escrevia o que havia memorizado, então me
levantava de novo e ia ler o resto. Certamente, nem alunos e nem professores
entendiam o que eu fazia. Tive até uma professora que me repreendia, dizendo
que eu atrapalhava os outros alunos... Eu não sabia explicar minha necessidade,
tinha medo e, principalmente, vergonha. Por isso, fui aos poucos tentando
memorizar uma quantidade cada vez maior de informações, pra ter que ir com
menos frequência até a frente da sala.
Tinha
amiguinhos na escola, mas eles nunca eram os da minha classe, porque esses eram
os que viam que eu tinha que levantar pra ler o quadro, assim como nas aulas de
educação física viam o quanto eu era péssima em esportes (era aquela que é
sempre escolhida por último). Ou seja, meus coleguinhas de classe eram aqueles
que sabiam que eu era diferente para além da aparência, por isso deles eu tinha
vergonha. Eu só era amiga das crianças de outras turmas, aquelas que eu
conhecia no ônibus escolar e que não conheciam minhas limitações.
Claro que
piadinhas quanto à minha brancura fatalmente aconteciam, pois crianças são mais
sinceramente cruéis do que adultos. Porém, no ambiente escolar eu até que conseguia
me sair bem – acho que porque era bravinha – e não posso dizer que sofri bullying
na escola. Bullying mesmo só na rua, de transeuntes que por motivos estranhos
gostam de gratuitamente ofender os outros...
Na escola,
era mais o medo de parecer estranha, não só pelo aspecto físico diferente, como
pelas outras estranhezas comportamentais decorrentes da deficiência visual, que
me levava a um total medo de rejeição por parte dos colegas. Esse estresse
emocional deixou resquícios... Mesmo hoje, me sinto angustiada num ambiente de
sala de aula e travo, ficando tão tímida que beira o antissocial.
De
qualquer forma, enquanto criança conseguia dosar um pouco minha timidez e ter
até bastantes amiguinhos. O que me incomodava mesmo era a questão do problema
visual.
Na
adolescência, a questão da aparência física - e de toda a atenção e curiosidade
que ela despertava - também começou a incomodar... Daí, na escola eu já não
tinha mais coragem de me levantar para ir ler o que estava na lousa e fui
obrigada a desenvolver outra técnica: ouvir a aula e tentar transcrever pro
caderno tudo o que era dito. (Na faculdade atingi a perfeição! Não fosse pelo
fato de o professor estar vivo, eu poderia dizer que psicografava a aula!).
Sempre
fui boa aluna, a “nerd”: queridinha dos professores e com boas notas. Como meu
pai e tios eram formados e bem sucedidos profissionalmente, jamais passou pela
minha cabeça ver a deficiência visual como fator limitante do meu
desenvolvimento intelectual ou cultural.
Claro que para quem não
enxerga a lousa é bem mais penoso absorver o que está sendo explicado. Requer
atenção dobrada. E ler qualquer coisa requer esforço dobrado, porque “a vista”
cansa rápido, você sente dor de cabeça etc e tal.
Mas, acho que a postura da minha família quanto ao albinismo em certa
medida me ajudou, ao menos nos campos dos estudos e do desenvolvimento
profissional... Afinal, se não podíamos falar sobre nossas limitações, também
não podíamos nos escorar nelas para justificar qualquer fracasso ou
desistência. E foi assim que segui meus estudos, cursei faculdade, tive bons
empregos e fui evoluindo profissionalmente.
Mas no
campo das relações interpessoais e, principalmente, dos relacionamentos
amorosos, aquela forma de lidar com o albinismo (não lidando com ele) em nada
ajudava... Conforme a adolescência ia chegando, eu ficava cada vez mais
insegura quanto à minha aparência e aceitação social... Dos 12 aos 15 anos
posso dizer que praticamente não tive amigos. Foram os anos em que senti de
fato solidão. Tornei-me totalmente insegura e por isso estava sempre na
defensiva. Qualquer olhar ou qualquer comentário me incomodava. Não, mais que
isso, me feria profundamente. Foram anos bem difíceis...
A coisa
foi melhorando aos poucos depois que me mudei pra São Paulo ( esqueci de
mencionar que sou de São José dos Campos). Numa grande metrópole as pessoas
reparam menos umas nas outras e estão mais acostumadas a conviver com as
diferenças. Eu me sentia um pouco menos observada e avaliada aqui.
Fiz
alguns poucos amigos (não na faculdade, que em ambiente escolar, como disse,
travo totalmente) e tive meu primeiro namorado, um relacionamento sério e
longo, que me ajudou bastante com o meu problema de autoestima. Mas não o
suficiente.
Precisava
entender o que era o albinismo para saber quem eu era. E fui atrás disso. Li
até tese de doutorado de aluno da USP sobre o assunto.
Mas, também
precisava conversar sobre minhas dificuldades e aflições. Mais do que isso, aliás:
precisava conhecer outros albinos, que não só entenderiam o que eu sentia, como
poderiam me dar uma visão emocional diferente da que "aprendi" com
minha família sobre a situação. Eu precisava de outras referências.
Então, em
2005, encontrei a comunidade do Orkut “Albinos do Meu Brasil”, criada pela Dre
(Andreza Cavalli), que me permitiu encontrar essas outras referências. Conheci
outras pessoas albinas das quais fiquei amiga por causa do albinismo e das
quais continuo amiga por afinidades além.
Para mim,
toda aquela troca de informações, percepções, confissões e experiências ajudou
muito a exorcizar vários fantasmas internos e a fortalecer minha autoestima.
O contato
com outros albinos, mais o meu próprio desenvolvimento na vida, fazendo amigos,
obtendo êxitos, e – certamente – o amadurecimento foram me fazendo ver as
coisas sob outra perspectiva.
Claro que
sempre fica alguma coisinha marcada no inconsciente e que as vezes se
manifesta... Como disse, ainda me sinto desconfortável em ambientes que remetem
ao escolar; também ainda receio a sinceridade cruel das crianças e a coragem
zombadora dos seres humanos quando estão em turma, mas me sinto bem resolvida
com a minha “condição albina”.
Na
verdade, nem sei me imaginar de outra maneira... Já fui questionada se gostaria
de deixar de ser albina se surgisse uma “solução para isso” e respondi que não.
Por mais que encha o saco ter que passar protetor solar a toda hora, ser albina
faz parte da minha identidade.
Hoje, por
um acaso da vida, namoro um rapaz também albino. Não o namoro porque seja
albino. Aliás, quando conheci os branquinhos da comunidade, costumava comentar
com as meninas que jamais ficaria com um rapaz albino, porque homens albinos me
remetiam à família, me lembravam meu pai e meus tios. E não era demagogia, pois
não “fiquei com um albino”. Fiquei com um rapaz que era meu amigo há anos e com
o qual me identificava pelo que está por dentro, não pelo que está por fora. Na
verdade, nem me lembrava mais que ele era albino... Quando olhava pra ele via
outras coisas, não a cor da pele e do cabelo.
E é isso
que temos que ter em mente. Quando as pessoas olham pra gente da primeira ou
segunda vez, sim, elas veem pessoas extraordinariamente brancas. Mas, ninguém
vai te olhar toda vez e pensar que você é albino. Aos poucos, as pessoas vão te
olhando e vendo outras coisas... As que você mostrar.
Tenho uma
amiga que diz que tudo na vida é uma questão de perspectiva, ou seja, que é a
maneira como lidamos com os fatos de nossas vidas que determina o quanto
sofremos. E ela tem toda a razão. Pena eu não ter entendido isso antes...
Não quero
transformar esse “depoimento” num texto de autoajuda, porém gostaria de finalizar
bregamente dizendo que o que pode nos limitar é mais o psicológico do que o
físico... Pensem nisso!
Olha só!!!! No trabalho o vídeo ficava bloqueado... Só agora que vi (e ouvi) que é "minha música". Rs. Obrigada!
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