segunda-feira, 30 de abril de 2012

CAIXA DE MÚSICA 69

Roberto Rillo Bíscaro

Ano passado, o álbum The Queen is Dead, do The Smiths, completou 25 anos. A data é tão importante que a imprensa musical soltou fogos de artifício celebratórios. O New Musical Express – revista inglesa – teve edição especial apenas sobre o grupo e o disco.
A justificativa pra tanto foguetório: os Smiths são tão importantes quanto os Beatles. A diferença é que enquanto os rapazes de Liverpool se gabavam de haver fumado maconha em Buckingham Palace, os pós-punk de Manchester detonavam a monarquia. Daí a diferença na visibilidade da influência dos 2 grupos. Os Smiths estenderam seus tentáculos de forma subterrânea, mas não menos forte.
Morrissey (voz e letras), Johnny Marr (guitarra), Andy Rourke (baixo) e Mike Joyce (bateria) inventaram um sub-gênero, o indie rock. Quando apareceram, em 82, a música pop era dominada por sintetizadores e personagens maquiados. Morrissey veio com suas letras lúgubres e ambíguas e Marr com seus riffs intoxicantes, numa sucessão vertiginosa de canções memoráveis. O número de carreiras musicais inspiradas pela banda continua a multiplicar-se até hoje.
Quando adquiri um notebook, ano passado, transferi alguns gigas de canções pra servirem como estação de rádio particular. Peguei apenas coisas amadas ardentemente. Na hora de inserir Smiths, a quantidade foi enorme; The Queen Is Dead foi copiado na íntegra. Amo e sei de trás pra frente todas as faixas, que ouço há um quartel de século e jamais enjoarei.
O álbum abre com a faixa-título, virulento, irônico e intelectualizado ataque à monarquia. Um coro de crianças cantando uma canção da época da Primeira Guerra Mundial dá lugar à bateria tribal de Joyce e em alguns segundos a metralhadora de Morrissey atira contra a rainha e a igreja em versos como “querido Charles, você às vezes não sente vontade de aparecer na primeira página do Daily Mail usando o véu de noiva de sua mãe?”. Típico Morrissey, a letra mistura preocupações sociais com a impossibilidade de discuti-las na chuva, pra não estragar o cabelo. Os Smiths nunca estiveram tão próximos do heavy metal quanto nesta faixa. E a conclusão, em meio à guitarra pesada: “a vida é longa demais quando se é solitário”. Frankly, Mr. Shankly é uma pérola de acidez music hall. Uma melodia brejeira traz a história dum empregado que detona o patrão metido a poeta. A ambiguidade morriseyana resplandece ora dizendo que quer entrar pra história da música, ora bombasticamente afirmando que preferiria escrever cartões de Natal com deficientes mentais a ser célebre. Dizem que a letra é “homenagem” ao presidente da Rough Trade, gravadora do grupo. I Know It’s Over é uma das letras mais lancinantes e sinceras sobre solidão já escritas na música pop. O verso inicial diz ”oh mãe, sinto a terra caindo sobre minha cabeça” ao que se seguem alusões a suicídio, amores não-correspondidos ou inventados e questionamentos amargos sobre solidão: “se você é tão divertido, por que está só esta noite?/se você é tão esperto, por que está só esta noite?”. O instrumental inicialmente esparso avoluma-se seguindo o aumento do desespero e culmina na massa sonora acompanhando os berros de Morrissey, repetindo o verso de abertura. Sublime. A barra continua pesada com Never Had No One Ever, onde o protagonista bate à porta de alguém pra confessar que jamais teve ninguém e está sozinho, desesperadamente só. “Tive um pesadelo que durou 20 anos, 7 meses e 27 dias”. Uma vida. Sons de pranto juntam-se a uma melodia arrastada com instrumentação compacta. Cemetery Gates traz uma melodia adorável com violão dedilhado e uma letra muito intelectualizada sobre plágio. Num “horrível dia ensolarado” 2 pessoas visitam um cemitério e leem as placas nos túmulos, discutindo sua autoria. Alguns críticos acusaram Morrissey de plágio, por usar trechos de outrem em suas letras, coisa que jamais ocultou ou negou. Seu ídolo Oscar Wilde fora acusado do mesmo pecadilho na sistemática campanha ao longo de décadas pra diminuir sua genialidade. O vocalista dos Smiths elege o escritor irlandês como santo padroeiro e compõe uma letra muito inteligente alfinetando detratores. A lindíssima Bigmouth Strikes Again abre com um mortífero solo de violão dedilhado, que continua por toda a canção, que ainda traz baixo e bateria pulsantes e guitarra cortante, tornando-a uma locomotiva dançante. Morrissey recebera o epíteto de desbocado pela imprensa britânica e, quando um atentando á bomba num hotel matou membros do gabinete de Margareth Thatcher, mas não a Dama de Ferro, Mozz manifestou seu pesar por ela não ter voado aos pedaços. Face ao ultraje desencadeado pela declaração, o letrista destilou seu fel em versos como “doçura, eu estava apenas brincando quando disse que queria quebrar todos seus dentes/doçura, eu estava apenas brincando quando disse que você deveria ser coberta de porradas em sua cama”, para, em seguida, comparar-se a uma Joana D’Arc de walkman e aparelho de surdez derretendo enquanto as chamas consomem seu corpo. É o Desbocado atacando outra vez! The Boy With the Thorn in his Side talvez seja a canção dos Smiths mais conhecida no Brasil. Influenciada pelos Beatles, a letra funciona em diversos níveis, podendo ser lida pela via do homoerotismo abafado pela sociedade, que cria monstros em potencial, mas também como questionamento sobre o porquê a banda não fazia mais sucesso. Amo muito, mas sempre tenho a impressão de que os vocais estão meio desconectados da melodia. Talvez conseguir que essa aparente desconexão forme um todo adorável seja marca da genialidade da banda. O clima rockabilly de Vicar in a Tutu, com sua guitarra totalmente jangle e sua letra divertida sobre um ladrão que vê um vigário vestindo saia de balé e no dia seguinte pregando moral no púlpito é ataque corrosivo á hipocrisia. Quando Morrissey apresentou-se no Brasil, em março, a platéia cantou o refrão de There’s a Light That Never Goes Out em uníssono. A canção é indubitavelmente um clássico entre os fãs, embora a maturidade me tenha feito superar o refrão. Não considero prazer ou privilégio morrer esmagado por um ônibus de 2 andares ou um caminhão de 10 toneladas, nem que seja ao lado da pessoa amada. Mas, não há como não se emocionar com o arranjo de cordas e a letra sobre desejo de viver plenamente, mas não poder fazê-lo por medo, timidez ou opressão. Dramaticidade digna do Romantismo. Só mesmo os Smiths pra se darem ao luxo de não usarem a faixa anterior pra fechar o álbum em clima de estratosfera lírica. Ao invés, o encerramento se dá com a melodia circular e de começo falso de Some Girls Are Bigger Than Others, com (outro!) achado guitarrístico de Johnny Marr. A letra é a mais leve de The Queen is Dead, sobre um cara que acaba de descobrir a única preocupação da humanidade desde o começo dos tempos: o tamanho dos seios. Pobre de quem não consegue perceber o banho de ácido sulfúrico candidamente cantado. Os Smiths alcançaram seu pico de criatividade com The Queen is Dead e um par de singles subsequentes indicava que a usina de boas idéias ainda geraria muita energia.
Ledo engano. Menos de um ano depois, os Smiths se separaram. Quando Strangeways, Here We Come saiu em setembro de 87, a banda já não mais existia. Talvez tenha sido melhor assim, visto que o canto do cisne não alcançou a qualidade do material anterior.
Seguiu-se feia e sangrenta batalha judicial por direitos autorais. Frustrações, exaustão, drogas, alcoolismo, falta de empresário mais competente foram algumas das razões dadas por diferentes membros pra explicar o fim de uma era.
Quaisquer que tenham sido as razões pro fim dos Smiths, o que realmente importa é que é deles o Sgt. Peppers do indie rock. Realizando o desejo expresso na letra de Frankly, Mr. Shankly, Morrissey, Marr, Rourke e Joyce entraram pra história da música.

3 comentários:

  1. Demais, demais, demais... More Smiths, please!

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  2. SOU SUA FÃ BOB...QUANTA BOA INFORMAÇÃO E CLAREZA DE IDÉIAS...BEM, PRÁ UM ÓTIMO PROFESSOR DE PORTUGUÊS ISSO TUDO QUE ESTOU ESCREVENDO É CHOVER NO MOLHADO.

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  3. Parabéns professor. Adorei conhecer The Smith. E seus comentários e informações me proporcionaram conhecer um pouco, de forma clara e objetiva, essa banda, sua trajetória e pensamentos. Além de entender um pouco das letras, as melodias e utilização dos instrumentos. Obrigado.

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