A
escritora compartilhou conosco sua história de vida e a de sua família. O
resultado é um texto que ressalta a importância da educação e da leitura, além
da garra dos irmãos albinos em vencer o preconceito e as dificuldades impostas
pelo albinismo.
Caros
amigos
Aceitei o convite do blog
e estou enviando este relato, por acreditar que posso contribuir para mudança
de postura da sociedade em relação às pessoas com albinismo e fortalecer a luta
contra o preconceito e a intolerância. Podemos ser tudo o que queremos ser,
basta que sejamos respeitados em nossa diferença.
Quem
sou eu?
Sou Angely Costa Cruz, professora, bibliotecária e agora escritora. Recentemente
em 13/04 lancei o livro “Será o
Benedito? E outras crônicas” (Baraúna, 219p. R$ 29,90 –
www.editorabarauna.com.br), na cidade de Timon – MA - Como autora, adotei o nome LILI
CAVALCANTI e gentilmente este blog noticiou, pois como disse ao enviar a
mensagem, considero da maior importância que pessoas com albinismo (como eu),
em todos os recantos do mundo saibam o quanto somos capazes e o quanto não
devemos dar ouvidos às palavras negativas. Minha história, assim como a de
muitos outros albinos é uma corrida de obstáculos, onde a cada dia temos que
superar mais um e seguir em frente.
A
família
Inicialmente, éramos seis irmãos, Airton, o único homem,
conhecido como Alemão (exatamente pela cor da pele), além de Angelane, Ângela,
Angely, Angelina e Anna Gláucia. Infelizmente, nosso amado irmão faleceu em
1991, ainda forte, jovem e inundou nosso coração de saudade. Ângela e Anna
Gláucia são as irmãs de pele morena; eu (Angely, ou Lili como me chamam em
família), Angelina e Angelane são as irmãs com albinismo, ou seja, a família
não é somente de albinos. Meus pais, Antonia e Adelino têm tonalidades
diferentes para cor da pele, não são albinos. Soube que meu avô paterno, este
sim, era albino.
Desse modo, essa constituição familiar sempre causou
estranheza em nosso meio social. Quando passamos a morar na cidade de Timon,
vizinhos e demais pessoas do ambiente social até desconfiavam que aqueles
quatro irmãos fossem mesmo filhos daquele casal tão diferente. Mas, como para
minha mãe não tem tempo ruim e sempre foi muito forte, nos aconselhou desde
sempre a não dar importância aos comentários da rua. E assim, ainda que com a
incompreensão dos demais, iniciamos nossa caminhada.
A
escola
O primeiro passo e o mais
difícil era ir à escola, pois lá teríamos que enfrentar de perto os olhares
surpresos e espantados de crianças e adultos, numa época em que não se conhecia
o termo educação inclusiva. Fiz juntamente com Ângela e Angelina, o Jardim de Infância
do Serviço Social do Comércio (SESC), pois nosso pai era comerciário na época e
esses trabalhadores tinham direito a matricular seus filhos na escola da
instituição.
Lá
aprendemos realmente tudo de bom que uma escola poderia oferecer, mas o fato de
ter albinismo e baixa visão (já usávamos óculos aos três anos) provocava
reações de estranheza em todos. Éramos alvos fáceis de brincadeiras, gozações
ou apelidos pejorativos, por parte de crianças ou adultos, da mesma forma que
muitos outros albinos. Foi aquilo que hoje se chama de bullying. O
constrangimento era tanto, que me tornei uma pessoa introspectiva, de poucas
(ou nenhuma) palavras. Na escola só falava quando era chamada e todos se
admiravam, porque minha mãe relatava que em casa meu comportamento era outro.
Claro, em família me sentia protegida e falava pelos cotovelos.
E
desse modo, cresci, eu mais retraída, Angelina mais comunicativa, pois sabia se
defender melhor de reações preconceituosas. Assim seguimos, apesar de toda
incompreensão a nossa volta. Por causa do albinismo e da baixa visão, tivemos
durante toda a vida escolar grandes dificuldades com a aprendizagem; não
contávamos com nenhuma ajuda, somente com a insensibilidade coletiva, se não
perdíamos o ano, a recuperação era certa. Ir à escola se tornou uma tormenta,
um sofrimento, o desconforto era imenso e por algum tempo passei a não mais
falar sobre minhas dificuldades aos professores e tentei parecer igual aos outros,
prejudicando a mim mesma; na minha cabeça, assim evitaria reações adversas a
minha pessoa. É aquela nuvem de baixa estima, que em muitos momentos insiste em
nos acompanhar, enfim. O sistema escolar era rígido e não havia espaço para
compreensão das diferenças. Só mais tarde entendi que não era eu que teria que
me adaptar ao mundo. É o mundo que precisa aceitar e conviver com as
diferenças.
Para
além da escola
O tempo foi passando, e se
a escola não era acolhedora procurei descobrir sozinha mais informação sobre o
que ouvia nas aulas, queria me aprofundar em assuntos de que gostava; livros e
gibis passaram a ser minha companhia constante, encontrei na leitura o refúgio
e a resposta para uma porção de dúvidas, em meio à resistente intolerância
alheia. Quando chegávamos da aula, aprendemos a ajudar nossa mãe em casa com as
tarefas domésticas, assim como nossa avó materna Gláucia, que morava ao lado. Depois
era hora do dever de casa, que no início mamãe ensinava, mas com o tempo
aprendemos a fazer sozinhos. À tarde, ao recolher os cadernos do colégio,
corria para ler outros livros e gibis, que sempre circulavam na casa de minha
avó. Assim, com dificuldades ou limitações eu e meus irmãos encerramos o hoje
chamado Ensino Fundamental. Airton teve maiores dificuldades e só terminou mais
tarde. E quase ao final da década de oitenta, fizemos o Magistério, curso equivalente
ao Ensino Médio na época, no tradicional Instituto de Educação Antonino Freire.
Esse fato também provocou o comentário geral da vizinhança,
pois não entendiam como tal façanha seria possível. Afinal, o comum nesta
região era viver sob o guarda-chuva dos políticos, mas seguimos em frente sem
dar ouvidos a ninguém e nos formamos professoras. Duas irmãs logo entraram para
o serviço público e paralelo a isso, ficamos a tentar por diversas vezes passar
na peneira do temido vestibular; nessa época também passei a dar aulas de
reforço em casa. A universidade só aconteceu em 1992, mas não conclui o curso,
pois além da limitação visual, o trabalho, o transporte e os problemas com o
sol me desmotivaram bastante. E o curso superior só veio mesmo em 2003, quando
entrei para Biblioteconomia, me formando em 2007.
O
Colégio “Gláucia Costa”
Mas, o grande divisor de
águas em nossa vida, foi realmente a fundação do colégio Gláucia Costa, em 1990,
por nossa família na cidade de Timon – MA e no mesmo local onde sempre vivemos
e sofremos com a intolerância alheia. Costumava-se dizer, aliás, que ali não
haveria futuro para ninguém, mas trabalhamos com dedicação e provamos o
contrário. Hoje, nossa Escola tem 22 anos e se tornou uma referência de
educação na cidade.
A escola nasceu a partir de um sonho projetado por nossa mãe:
as quatro filhas professoras teriam sua própria escola. O que para alguns era
impossível. Mas, o tempo provou sua sabedoria e mesmo sob algum olhar
preconceituoso, o sonho virou realidade. Na prática, a escola surgiu de nossa
preocupação com a baixa qualidade de ensino que se verificava na cidade e da
nossa aposta em preencher essa lacuna na sociedade timonense. E para
transformar esta certeza em realidade, caímos no trabalho duro, braçal e intelectual
para por de pé toda a estrutura física e de fundamentação pedagógica da escola.
Foram anos de esforço intenso.
O nome da Escola é uma homenagem a nossa avó materna,
Gláucia, que por muito tempo morou no mesmo local. Com a fundação do colégio, e
sua progressiva ascensão diante dos bons resultados educacionais, finalmente
viramos o jogo e todas aquelas pessoas que um dia nos olharam digamos, “atravessado”,
passaram a nos admirar, respeitar, confiar no nosso trabalho e melhor, se
tornaram parceiros da comunidade escolar, de modo que a Escola mudou não
somente o olhar sobre a educação, mas principalmente a postura da sociedade
local em relação à nossa diferença.
O colégio “Gláucia Costa” é, portanto, uma página feliz em
nossa história e continua a prosperar junto a comunidade; colhendo bons e
surpreendentes resultados que mudaram a realidade educacional da cidade. Além
disso, modificamos o mercado de trabalho local, oferecendo anualmente diversas
vagas para professores e demais trabalhadores do setor educacional, ou seja, contribuímos
fortemente para o progresso e desenvolvimento da região. E o melhor de tudo, é
uma escola que põe em prática o respeito às diferenças. Para conhecer um pouco
mais da Escola e de nossas ideias, acesse o site www.colegioglauciacosta.com.br
Vivendo
e aprendendo a jogar
Assim, nossa adolescência
e fase adulta sempre foram focadas no trabalho. Airton, nosso irmão colaborou
imensamente com a realização deste sonho, mas nos deixou cedo. O “Alemão”, como
era conhecido teve uma vida ativa, com enorme poder de comunicação e dedicação
aos projetos que abraçou; seu exemplo de trabalho e preocupação com a cidade
nos orgulha e é um farol que ilumina nossa vida.
Angelane (com albinismo), casou , teve três filhos e
conquistou a pós-graduação (os filhos não tem albinismo). Ângela, uma das irmãs
morenas é pós-graduada e diretora da Escola que fundamos, também casou e tem
dois filhos. Anna Gláucia, a outra irmã morena é Enfermeira, com pós-graduação
na área, tem uma filha de seis anos e mora conosco, na casa de nossos pais.
Angelina (com albinismo) é hoje Mestre na área de Informática, pela
Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Eu (Angely) me tornei Bibliotecária por vocação e paixão
pelos livros, tenho uma pós-graduação e há pouco me lancei como autora, pela
Editora Baraúna, com o livro “Será o
Benedito? E outras crônicas”. Escrevo para jornal desde
2002 e todos que passaram a ler as crônicas, começaram a me cobrar a publicação
de um livro. Estou felicíssima com o resultado, pois a edição do livro é de
excelente qualidade e vem obtendo ótima repercussão entre os leitores.
Desse
modo, a leitura e a escrita sempre foram marcantes em minha vida e nem mesmo a
baixa visão me impediu de crescer intelectualmente. É verdade que leio mais
devagar, tenho problemas com claridade e tenho que estar sempre no
oftalmologista, mas o prazer de ler é maior que isso. Outro cuidado permanente
é com o sol, principalmente aqui no meio norte do Brasil, aonde a temperatura
chega aos 40 graus. Então, é protetor solar sempre, roupas de mangas compridas,
casacos, sombrinha, chapéu e óculos escuros. Mas, como todo cuidado é pouco o
câncer de pele já me atingiu por várias vezes. Por isso, para nós, pessoas com
albinismo nada como uma boa noite de luar.
Embora hoje, a sociedade esteja mais bem preparada para
conviver com as diferenças e o termo educação inclusiva, ter virado verbete da
moda, ainda vemos demonstrações claras de intolerância em todos os lugares. É
impressionante como muitos não se educam para respeitar as diferenças, mesmo na
universidade, local onde a postura deveria ser outra. Mas, enfim, nem tudo é
como se quer e todos os dias temos que vencer uma batalha. O certo é que as
pessoas com albinismo (como eu e minhas irmãs) precisam mostrar seu valor cada
vez mais, sem dar ouvidos a comentários maldosos, ou permitir que a baixa
estima nos afete. O importante é saber que as conquistas virão, apesar de tudo.
De minha parte, agradeço todos os dias a Deus e a força de minha
família. Choro de angústia sempre que leio neste blog sobre a tragédia que
afeta as pessoas com albinismo na África. Em meu livro inclusive, há uma
crônica sobre isso. Encerro aqui
informando também que o lançamento que fiz no Salão do Livro do Piauí (SALIPI),
em Teresina, entre os dias 13 e 17 de junho passado foi um sucesso, me
surpreendeu mesmo.
Assim,
precisamos superar os obstáculos a cada dia e seguir adiante, com fé, esperança
e atitude positiva, porque assim estaremos prontos a enfrentar os desafios a
nossa volta. Felicidades a todos.
Angely
Costa / Lili Cavalcanti