quinta-feira, 27 de setembro de 2012

TELONA QUENTE 58


Roberto Rillo Bíscaro

Meu passeio pelas adaptações gregas de algumas de suas tragédias tem tido efeitos colaterais benfazejos: 1) relê-las peças após cada filme, a fim de escrever pro blog e 2) conhecer o incrível trabalho da atriz Irene Papas, que só sabia de ouvir dizer. Como em Antígone e em Ifigênia, ela está no elenco de Electra (1962), no papel-título.
Eurípedes retomou a maldição dos átridas pra esse desdobramento do banho de sangue, iniciado quando vovô Atreu ofereceu seus sobrinhos como banquete pro próprio pai dos moleques. Mitologia grega é punk "hardgore"!
Vitorioso na Guerra de Tróia, Agamenon retorna a Micenas, 10 anos após ter sacrificado sua filha Ifigênia em troca de ventos praarmada helênica. Sua esposa Clitemnestra nunca o perdoara, porém. Durante a ausência do monarca, torna-se amante de Egisto – primo de Agamenon e fruto duma relação incestuosa entre pai e filha! Com medo de que os filhos de Agamenon se vinguem, Clitemnestra e Egisto banem Orestes do reino e oferecem a mão de Electra prum campônio. Rebaixada socialmente, a princesa não teria como se vingar. Na noite em que volta pra casa, durante o banho, Agamenon é assassinado pelo casal adúltero.
Quando a tragédia começa tudo isso ocorrera há anos. No filme, os primeiros minutos mostram o assassinato de Agamenon e o banimento de Electra, sem diálogos, em uma sequência inesquecível pelo contraste entre a pequenez da jovem e as grandes paredes do palácio,  perseguição de sua mãe e a morte estilizada de Agamenon enquanto se banha.
Electra amava tanto o pai a ponto de não perdoar a mãe e desejar vingança através de sua morte. Quando o mancebo Orestes retorna do exílio pra vingar Agamenon, encontra a irmã e ambos decidem matar a própria mãe.
Electra tem tal adoração pelo pai – como se ele fosse grande coisa! – e fala tanto na vida sexual da mãe e na ausência de uma sua (o marido camponês jamais a tocara, por respeito a sua classe social) que dá pra suspeitar duma pontinha de inveja, daí o uso da personagem por certos setores psicanalíticos pra nomear o famoso complexo.
A peça de Eurípedes vez mais ecoa nos dias atuais ao indagar se Orestes pode assumir o papel de governante, após sujar as mãos com o assassinato de quem lhe deu a luz. Legitimidade é questão candente em época de julgamento de mensalão e ficha limpa.
Das adaptações vistas até o momento esta é a que mais cara tem de “tragédia filmada”. Nas peças gregas, o lugar permanecia o mesmo - geralmente público, como a frente de um palácio – devido às condições de produção da época. O filme manteve muito disso: a maior parte da ação se passa ao redor da choupana de Electra. A paisagem pedregosa e aberta, quase despida de casas ou vegetação, dimensiona e metaforiza a cabeça monomaníaca da jovem e sua austeridade.
A mudança mais significativa de ambientação é quando do acerto de contas entre Orestes e Egisto. No cinema, a convenção trágica de narrar as ações não tem razão de ser, afinal, a sétima arte conta histórias através de imagens. A bela cena, envolvendo pantomima – recomendada e usada em diversas montagens teatrais das peças gregas – evita o jorro de meleca que resultaria duma adaptação literal do texto, evidenciando o bom senso do diretor na transcodificação dum medium a outro. 
O coro feminino está presente no filme de Michael Cacoyannis, cumprindo sua tarefa de comentar, predizer e explicar acontecimentos, um par de vezes sob forma de música, recurso também usado em montagens teatrais. O público não acostumado ás convenções trágicas pode estranhar a mulherada de véu e roupas escuras circulando pra lá e pra cá, mas isso, em conjunção com o cenário, a linda cinematografia em branco e preto e os efeitos sonoros realmente conferem um clima mítico à trama. Devemos lembrar que quando Ésquilo, Sófocles e Eurípedes escreveram suas veneradas peças – 5 séculos antes da era cristã – na Atenas democrática, seus temas já eram mitos praquela cultura, ou seja, eram percebidos como tendo acontecido em tempos imemoriais. A Electra cinematográfica consegue reproduzir isso em certa medida.
Irene Papas mostra novas nuances de seu arsenal interpretativo ao compor uma Electra rígida, amorosa e culpada, por vezes, passando por estes 3 estados numa só cena.
Aleka Katselli como Clitemnestra está puro glam! Atentem pra cena em que desce da carruagem e abre as “asas” do vestido.
No You Tube, legendado em inglês

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