sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

PAPIRO VIRTUAL 44

Me dei um leitor de e-books como presente de Natal. Desapegado de suportes tecnológicos, não tenho essa de “nada substitui o cheiro do papel, virar as páginas” etc. Interessa-me o conteúdo. Também amo praticidade, por isso, quanto mais cômoda a forma, melhor. Gostei da tela, não ofusca; achei o máximo poder ter centenas de obras num receptáculo único. É levinho, ao passo que há calhamaços de celulose que doem a tendinite!
Pra estrear minha adesão à contemporaneidade, decidi ler as tragédias sofoclianas ainda não conhecidas. Comecei com a mais antiga (talvez), Ájax. Cri divertido o paradoxo de usar suporte hi-tech pra ler texto escrito há 25 séculos.  
Antes de ser produto de limpeza, Ájax era o herói homérico combatente em Tróia. Findo o conflito, decidiram presentear alguém com a armadura do falecido Aquiles. A disputa ficou entre Odisseu e Ájax. Quem levou a prenda foi o primeiro, pela esperteza e capacidade de articulação. Ájax era uma montanha de músculos meio sem cérebro, tadinho. Vem da Grécia a dicotomia entre labor intelectual e físico e a valorização do primeiro. Envergonhado com a derrota e acreditando que sua honra fora maculada, Ájax suicida-se (cabeça dura, além de meio oca).
Sófocles utilizou esse material do período heróico da história grega pra criar uma peça onde delineia com maestria o protótipo de herói trágico que passou a representar pra alguns o protagonista trágico típico. Seria mais correto dizer que se trata do herói trágico sofocliano, uma vez que Ésquilo e Eurípedes operavam de modo algo distinto.
O tragediógrafo inventa uma crise de nervos pra Ájax, logo após o anúncio do ganhador da armadura. Cego de fúria, o herói dirige-se ao acampamento grego pra matar Agamenon, Menelau, Odisseu, enfim, todos os comandantes. Atena, deusa da sabedoria e protetora de Odisseu, distorce temporariamente a percepção de Ájax, que chacina ovelhas e gado, pensando tratar-se de seus desafetos. Seria o primeiro caso de insanidade temporária?
A peça se inicia com a deusa fazendo Ájax perceber o papelão. Quando o soldado se dá conta de mais essa humilhação, resolve se suicidar. Esse é o típico herói sofocliano: uma vez decidido a executar uma ação, nada o demoverá. Essa inflexibilidade distancia-o de nós, pobres mortais, tornando-o modelar.

Mesmo servindo de exemplo pra diversos esquemas definidores das características formais da tragédia, Sófocles sequer encaixa-se perfeitamente neles. Não é incomum a afirmação de que nas tragédias a violência ocorre SEMPRE fora da cena, sendo anunciada por mensageiros. Ájax se mata em frente à platéia e seu cadáver permanece no palco por boa parte do tempo. É que, depois de sua morte, iniciam-se as discussões sobre ele merecer ou não ser enterrado.
O sepultamente e todo o cerimonial envolvido eram deveras importantes pros helênicos. Traidores não mereciam essa honraria; seus corpos deveriam ser deixados ao relento pra serem devorados. Lembram-se do imbróglio de Antígone, também de Sófocles?
Ájax não se arrepende por haver pensado em chacinar seus companheiros, o problema é justamente o contrário: fica humilhado por não haver logrado êxito. Mas, ao cogitar eliminar os seus por não haver obtido um feito pessoal, é percebido como traidor da polis. Quem intercede a seu favor é seu maior inimigo, Odisseu, demonstrando compaixão e capacidade de articulação, ao contrário da obstinação de Ájax. Em certo sentido, a peça trata da obsolescência dum tipo de herói em detrimento de outro, mais maleável, mais, comunitário, digamos. Isso não significa que Ájax seja execrado.
Com estilo menos pomposo e coro menos presente do que em Ésquilo, além da adição dum terceiro ator em cena (segundo Aristóteles, invenção de Sófocles), o texto sofociliano apresenta ainda hoje fascinantes possibilidades de encenação. Como representar a invisibilidade de Atena pra Odisseu, mas não pra Ájax? E a queda proposital desse sobre a espada?
Amantes de animais certamente torcerão o nariz pras descrições da matança dos pobres bichinhos, que desde sempre têm pagado pela imbecilidade humana ou de supostos deuses.

Um comentário:

  1. a tecnologia, qdo boa, não deve ser rechaçada. na minha época de sampa, entrava na Biblioteca Mário de Andrade ávida por leitura. saia de lá frustrada, pois nao tinha "nunca" uma referência para leitura. acabava no setor de Arte e deparava-me c um porre de funcionários públicos sem expediente para o cargo. nao adquirir o ebook é o mesmo q nao aceitar um copo dágua em dias quentes de Penápolis. analogia besta, mas achei apropriada! estou ávida de sede por um gadget desse !...já pensou ter uma biblioteca móvel e q caiba na palma de sua mão! os tragediógrafos "pirariam"...oh época de renascença essa nossa!...

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