Hermeto Pascoal. O crazy albino de Miles Davis
Clara Silva
O "bruxo" dos sons brasileiro toca em Sines, no Festival Músicas do Mundo, neste sábado. Antes de morrer, Miles Davis disse que se voltasse à Terra gostava de ser como ele
O "bruxo" dos sons brasileiro toca em Sines, no Festival Músicas do Mundo, neste sábado. Antes de morrer, Miles Davis disse que se voltasse à Terra gostava de ser como ele
Hermeto Pascoal escapou-se ao trabalho na roça por ser albino e não poder apanhar sol. Entreteve-se a tocar instrumentos que criava com ferro para os animais de Lagoa de Canoa, em Alagoas, no Brasil, onde a electricidade só chegou quando ele se foi embora. O músico multi-instrumentista e um dos mais importantes nomes do jazz brasileiro é um dos cabeças de cartaz do Festival Músicas do Mundo de Sines deste fim-de-semana. Ao telefone de um hotel em Londres, fala de intuição, dos porcos que levava para estúdios de gravação e de quando conheceu Miles Davis: "Pensei que ele era gay."
De onde é que veio a sua alcunha de bruxo?
Foi em 1970 ou 80 que nasceu esse nome. Veio de uma jornalista brasileira maravilhosa, a Maria Baiana, que morava nessa época no Rio e escreveu isso. Lá na minha terra, no Estado de Alagoas, temos muito aquela influência de Portugal e as mães diziam para os filhos não saírem de noite para o escuro porque vinha a bruxa. Quando ela falou isso eu fiquei: "Meu Deus, que será isso?" Sabia que era uma coisa boa mas falei com ela para saber o que dizer nas entrevistas, assim como com você agora.
Afinal que lhe disse a jornalista?
Disse que bruxo era da magia boa que faço com o meu trabalho. Foi uma coisa que pegou, o mundo inteiro gostou. Para mim a música é mágica, está em todos os bons contextos da vida.
Começou a tocar no meio da natureza?
Fiquei até aos 14 anos de idade em Lagoa da Canoa e a luz só chegou quando eu saí de lá. Isso foi muito bom porque o meu público eram os animais: pássaros, peixes, galinhas, cavalos, até as cobras vinham para escutar a minha música. Era uma coisa mágica, divina. O meu avó trabalhava com coisas de ferro e eu pegava nos restos de ferro, pendurava numa corda e ficava batendo, fazendo música só com a intuição. Foi daí para a frente que vi que era músico.
E hoje em dia ainda toca com instrumentos pouco convencionais, como a água dum lago ou a sua barba?
Já sou assim desde criança. Pego nas coisas de cozinha para tocar, na chaleira,? Mas a natureza não é só matos e rios. É juntar aquilo tudo e até dez mil pessoas falando no meio da rua, carros andando, uma pessoa dirigindo bem, um comboio, tudo isso é natural. Transformo tudo isso em música universal.
Através da intuição?
Sou 100% intuitivo. Só aprendi a teoria a partir dos 42, 43 anos. Sei como usar a teoria, mas a teoria não me ensina. Primeiro senti e depois veio o saber. Sou um autodidacta puro. Tenho professores de intuição que não conheço, eu sinto. Não estou falando de religião. Se tiver religião, a minha religião é a música e é através dela que respeito as outras todas.
Já compôs mais de cinco mil músicas. Como é que consegue lembrar-se delas quando não tem papel para escrever?
Se fosse contar as músicas que invento a cada show são muito mais do que cinco mil? Em cada um componho uma música na hora, mas escritas já devo ter passado as cinco mil, sim. Estou sempre criando novas. Às vezes peço às pessoas para gravarem com os telefones para não me esquecer. Agora com a internet é mais fácil, todo o mundo anda com um telefone que dá para gravar. Até no avião eu gravo músicas, só se tiver com muito sono é que não. Mas a música até me tira o sono.
Voltando aos animais, costumava levar porcos para os estúdios de gravações.
Até para festivais. Uma vez quis levar os animais para um, achei que ia ser uma coisa nova, mas na época não foi muito compreendido, a polícia não deixou. Uma pessoa que trabalhava na televisão é que imitou perfeitamente na hora do show. Era um porco e quatro galinhas, era lindo o som. Logo na hora eu mudei o jeito do arranjo com a orquestra. Todo o mundo falou disso, foi uma coisa muito famosa.
Há aquele mito de que tentou levar doze porcos para o festival de Montreux, em 1979. É verdade?
Não foi verdade. Aqui na Europa encontro porcos tão bons ou melhores do que lá [no Brasil]. Saiu [nos jornais] que eu queria levar porcos e que não deixaram, mas isso é mais um bocadinho de sensacionalismo dos media. Nossa Senhora, eu não ia trazer doze porquinhos e gastar esse dinheiro, quando pela metade podia comprar porco aqui e botar no festival. Nesse festival nunca usei porco. Foi outra coisa.
Também conheceu o Miles Davis nos anos 70?
Foi um presente lindo de Deus conhecê-lo pessoalmente. Uma pessoa que tinha saído das drogas e que estava numa fase muito linda, muito bacana. Eu acredito muito nessas coisas do destino e conheci assim, quando fui assistir um show dele nos Estados Unidos. Estava lá com o Airto Moreira, que tocava percussão com ele. Estava sentado numa cadeira e chegou aquele moreno lá falando no meu ouvido, bem vestido, um cara que até desconfiei: "Será que é gay?"
Que lhe disse ele?
Tinha combinado com o Airto Moreira para ele me vir socorrer, porque eu não falo inglês e ele veio correndo para mim dizendo que era o Miles Davis e que ele nunca fazia isso com ninguém, que aquilo 'tava cheio de músicos e que ele nunca falava com ninguém?
E foi falar consigo?
Ele chegou para o Airto e perguntou quem eu era. Não sabia o meu nome, porque na altura eu ainda era desconhecido nos Estados Unidos. Disse que não sabia como tinha vindo falar comigo, que tinha sido uma coisa muito forte que o tinha trazido. Daí para a frente conhecemo-nos pessoalmente e ele quis conhecer a minha música. Ficámos amigos, mas era uma coisa mais espiritual, era difícil eu ir na casa dele ou ele na minha.
O Miles Davis chamava-lhe "crazy albino".
Sim, foi tudo tão bom, esse amor e esse carinho, que perto de falecer ele deu uma entrevista na Radio France em que lhe perguntaram o que é que ele gostaria de ser quando voltasse à terra depois de morrer. Ele respondeu: "Queria ser uma pessoa como aquele albino louco." Ele me chamava assim na brincadeira. Fiquei muito orgulhoso e feliz.
Neste momento toca com quantos grupos?
Tenho quatro formações, a Sinfónica, a Big Band, o Grupo [com o qual vai tocar no Músicas do Mundo de Sines] e o duo com a Aline Morena, a minha esposa. Mas ela faz parte dessas outras formações todas também. Você vai ver com o grupo como ela é uma grande cantora. Era uma coisa que nos faltava, quando ela entrou, o grupo ficou mais coeso.
Como é que se conheceram?
Conheci-a em Paraná, na cidade de Londrina. Fui fazer um workshop ao ar livre e falei: "Gente, queria ver quem é que tem coragem de subir ao palco e fazer um som comigo." Ela não me conhecia e subiu com um pedaço de madeira. Pensava que fosse fazer percussão, mas ela perguntou se podia cantar a minha música "Montreux". No final fiquei com aquela voz no pensamento.
E encontraram-se depois do concerto?
Ia fazer um festival noutra cidade próxima, Maringá, e ia convidá-la para fazer uma canja com o meu grupo, mas ela já tinha saindo correndo do camarim que nem uma louca com as tralhas. Quando cheguei a Maringá, ela me ligou perguntando se podia subir no meu quarto. Eu estava esperando uma entrevista duma jornalista e pensava que era ela. Quando percebi disse: "Menina era você que 'tava esperando."
Estão juntos há quanto tempo?
Há dez anos. Na altura que a conheci já estava viúvo e o meu filho Flávio até falou: "Pai, essa menina é muito nova." Estamos muito felizes, ela é muito mais nova do que eu, fez 34 anos e eu fiz 77, mas parece que somos da mesma idade através da música e do amor. Espero durar muito mais tempo para ser feliz com ela, com a música e com o público.
Queria dizer outra coisa também: "Este canto vem de longe/ A distância não sei dizer/ Salve, salve a toda a gente/ Que vive e deixa viver/ Aqui vai o nosso abraço/ Com o som e o saber/ Tirando de nossas mentes/As palavras pra dizer/ A Música segura o mundo/Enquanto a gente viver/ É a maior fonte sem fim/De alegria e prazer/ Toquem, cantem, minha gente/Até o dia amanhecer."
http://www.uol.com.br/
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