O que os olhos não enxergam, o corpo percebe
Karla C. Marques
O corpo humano reflete uma série de estímulos provocados pelos sentidos. Olfato, tato, paladar, visão e audição são os cinco sentidos de percepção. Juntos constroem associações sinestésicas e permitem que o indivíduo assimile melhor o meio em que vive, além de identificar situações e distinguir tudo que possa estar ao seu redor. Muitas pessoas nascem com deficiência em algum desses sentidos, outras perdem por consequência de fatores patológicos. A perda ou ausência da visão obriga uma série de adaptações, a habilitação – para quem nasce cego – e a reabilitação – para quem tem perda posterior ao nascimento.
Quando há perda da visão, os quatro sentidos trabalham em prol do desenvolvimento cognitivo - uma expressão que está relacionada com o processo de aquisição e desenvolvimento do conhecimento. Se a visão foi perdida de forma gradativa ou depois da aquisição da memória visual, é necessário que haja um processo de readaptação. O psicólogo e escritor Jorge Monteiro de Lima perdeu a visão aos 24 anos, depois de ter passado por uma cirurgia.
Segundo Jorge, “a percepção humana reflete uma das funções psicológicas estudadas pelo psiquiatra Carl G. Jung que chamamos de função sensação. A visão é um dos cinco sentidos e os demais todos estão nesta mesma atividade, nesta função psicológica. O que ocorre é um imenso mecanismo de compensação na qual a energia psíquica é deslocada de um sentido para os outros. Assim um cego para sobreviver desenvolve mais o uso dos outros sentidos em um mecanismo natural de adaptação que ainda usa a intuição, a criatividade e a capacidade inata de formar imagens mesmo sem enxergar”.
O processo de reabilitação por qual Jorge passou exigiu esforço e força de vontade, pois todas as ações que desempenhava com normalidade, até mesmo de forma mecânica, tiveram que ser reaprendidas. “Todos dos mais simples gestos, desde a higiene diária a aprender a atravessar uma rua. Em tudo é necessária adaptação. Tive de reaprender a tocar (também sou músico), a outras formas de estudar, reconhecer as pessoas, enfim, em tudo vivenciamos outra forma de aprendizado”.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o olhar da reabilitação no contexto da funcionalidade amplia os horizontes e contextualiza o indivíduo, a família, a comunidade em uma perspectiva mais social, privilegiando aspectos relacionados à inclusão social, o desempenho das atividades e a participação do indivíduo na família, comunidade e sociedade. Organiza-se a partir de três componentes: primeiro o corpo, compreendido em sua dimensão funcional e estrutural; depois a atividade e participação, como aquilo que o corpo é capaz de realizar. Representa aspectos da funcionalidade individual e social, englobando todas as áreas vitais, desde as atividades básicas do cotidiano até interações interpessoais e de trabalho; e por fim, o contexto em que cada um vive para realizar suas atividades, entre os quais estão incluídos os fatores ambientais, que têm um impacto sobre todos os três componentes.
No caso de pessoas que nascem cegas, existe um processo de habilitação – o ensino voltado para adaptação dos deficientes visuais. Esse processo é aplicado em crianças que nasceram com deficiência visual, tornando-as mais perceptivas e trabalhando maneiras de aprendizagem comuns, como ler, obter dimensão através do som, distinguir texturas diversas, entre outros recursos.
Alisson Barbosa Azevedo, 29, é funcionário público e presidente da Associação dos Deficientes Visuais do Estado de Goiás. Ele nasceu com ausência da visão. “Desde pequeno fui estimulado pela minha família a praticar exercícios que aguçassem os outros sentidos, principalmente por uma tia, que era pedagoga. Frequentei escola para deficientes visuais a partir dos sete anos. Os materiais didáticos usados para transpor sentido às crianças tinham sons, texturas diferentes”.
A criança nesta condição se adapta bem mais do que as que perdem posteriormente a visão. O que empaca é a superproteção, ou seja, quando os pais não permitem que a pessoa experimente o mundo para se superar. O ideal é deixar que as crianças estimulem ao máximo suas capacidades para que criem independência.
A luz dos olhos
O que as pessoas desconhecem é que não existe apenas um tipo de cegueira. Todos remetem a falta da visão à ausência de luz. O que acontece é que existe uma forma gradativa da perda da visão. Alisson descreve como enxerga o mundo através dos seus olhos: “exponho da mesma forma com que José Saramago, em seu livro Ensaio Sobre Cegueira pontua. 'Um branco leitoso'. Consigo perceber, por exemplo, onde está localizada a janela pela luz que ela transporta, o que não é o caso de algumas pessoas que descrevem total escuridão”.
A luz é fundamental para existência da vida no planeta. Como caracterizar a presença ou ausência de luminosidade para quem nunca ou, parcialmente, passou pela experiência de contemplar os raios solares, ou até mesmo a falta deles? “Na sobrevivência diária nem sempre temos tempo de pensar nisto. Na vida temos expectativas, sonhos e acho que ninguém é satisfeito com a vida que tem. Às vezes sinto falta de dirigir, de ter um pouco mais de autonomia pra pequenas atividades, mas não especificamente da luz. Cada um de nós tem uma necessidade ou vontade de viver algo a mais em algum ponto, somos insatisfeitos por natureza”, relata o psicólogo Jorge.
Sonhos e desenhos cegos
Os sonhos são os relatos que as percepções transmitem ao inconsciente, muitas vezes não captadas durante o dia, mas concentradas e transportadas durante o período do sono. As pessoas que possuem suas capacidades perceptivas em um estado comum dispõem de sonhos visuais, enquanto que indivíduos cegos (de nascença) gozam das mesmas capacidades, só que de forma sensorial. A impressão dos lugares, os cheiros e até mesmo as pessoas existentes no decorrer dos sonhos são percebidas pela sensação de informação que os sentidos promovem. “Eu não vejo enquanto sonho, mas tenho a percepção do lugar e de quem está presente. Mesmo que as pessoas não emitam nenhum tipo de som ou linguagem”, diz Alisson.
Aqueles que perdem a visão depois de certo tempo ainda sonham com imagens por um período, mas essas começam a ficar distorcidas à medida que há adaptação da nova rotina.
O artista turco Esref Argaman impressiona a comunidade médica e científica mundial com sua habilidade extraordinária: cego de nascença, ele pinta usando uma técnica considerada dificílima, a da perspectiva de três pontos - se trata de uma técnica utilizada para delimitação das imagens, com pregos e linhas.
A equipe do DMRevista pediu para Alisson desenhar em uma folha de papel um objeto qualquer. Ele disse não ter a capacidade de traçar linhas contínuas para dar sustentação a qualquer imagem, pois não possui memória visual, mas consegue distinguir as grandes diferenças de formas e texturas através do tato. “Eu não consigo transpor essas formas e esboçá-las em desenhos, mas existem cegos de nascença que possuem essa habilidade. Estamos cercados por vários gênios, pois é isso que eles significam para mim. A deficiência não é uma má sorte, como todos pensam. É apenas uma condição humana como muitas outras”, comenta Alisson, que, além de funcionário público, possui graduação em Direito e registro junto a Ordem dos Advogados (OAB).
Alguns filmes retratam a deficiência visual com uma perspectiva descritiva dos fatos, algumas sugestões são: Janelas da Alma, Ray (a biografia do músico de jazz Ray Charles), A cor do paraíso e Ensaio sobre cegueira (baseado na obra do José Saramago).
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http://www.dm.com.br/texto/144300-deficiancia-visual