sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

PAPIRO VIRTUAL 67



Roberto Rillo Bíscaro



Em 1678, John Bunyan lançou o religioso Pilgrim’s Progress, alegoria moralizante que narra a jornada de Christian, desde sua natal Cidade da Destruição (nosso mondo cane) até a Cidade Eterna (o Paraíso, onde mais?). Uma das estações dessa peregrinação é a eterna Feira das Vaidades, onde pessoas apenas se apegam aos bens materiais.
Critica-se o tal apreço e isso tem que ser levado em conta ao se avaliar Vanity Fair, a novel without a hero, serializada entre 1847-8, crítica ao individualismo e à leviandade social, perpetrada pelo inglês William Makepiece Thackery.  Correto que as situações servem como lingerie customizada no mundo Kardashian das Mulheres Ricas (Pobres pros p(o)adrões da superada Paris), mas o tom geral não é o do cinismo indiferente e amoral fuck-óffico da pós-modernidade. Os cambalachos e subterfúgios das personagens guardam o travo da admoestação de exemplo a não ser seguido, que de nada adiantou: uma das revistas mais famosas  na arte de dar a impressão de que leitores “comuns” participam do grand monde chama-se Vanity Fair.
O romance não tem herói porque mesmo Amelia, sua personagem mais doce e sofredora (um saco de jovem e de mulher, que faz a gente sadisticamente torcer pra que sofra mesmo de tão chata!) não tem nada de especial ou elevatório à condição de heroína de romance; o próprio narrador admite.
1848 foi o ano em que parte da Europa viveu perigosamente: muita gente pegou em armas pra cobrar a parte do bolo prometida, mas sempre devorada, pela burguesia vencedora na luta contra a nobreza. Thackeray não poupou ninguém em sua denúncia das máscaras e mesquinharia abundantes no convívio social. Nobres, burgueses, criados, todos lutam pra passar outrem pra trás e tirar vantagem, fazendo de Gerson parco amador.
Vanity Fair conta as a/desventuras dum grupo de pessoas ao longo de décadas. Folhetinescamente, temos o núcleo de Becky Sharp (pobre) e o de Amelia Sedley (rico), que se mistura, multiplica, cambia de posição, vai e vem.
Becky Sharp (atente pra esse sobrenome!) é atípica no romance do século XIX: luta sozinha num mundo onde a ascensão social pras mulheres quase só é possível através do casamento. Na apresentação da personagem, o narrador – que trai diversas vezes sua antipatia por essa mulher tão “perigosa” – meio que a masculiniza atribuindo-lhe características do então chamado “sexo forte” pra explicar e justificar o caráter agressivo em comparação ao contraponto de Amelia Sedley.
Amelia podia se dar ao luxo de ser sexo frágil porque tinha as armas da ascensão social nas mãos. Só que não. As armas estavam nas mãos do homem, do papai. Só que também não. A História volta e meia dá seus tapas na cara das confundidas personagens pra relembrá-los doloridamente que muito do que se imagina individual é na verdade determinado historicamente.
O enredo começa no início do século XIX, quando a Inglaterra era assombrada com a possibilidade da invasão francesa via Napoleão. A ascendência francesa de Becky não seria meio de tornar a personagem antipática ou vilanesca? Afinal, os franceses eram rivais históricos dos anglos. Becky invadir a sociedade equivalia a uma nova invasão normanda?
O colonialismo britânico já trazia mulatos e negros pra povoar a ficção escrita no país. Até uma herdeira mulata desponta como personagem importante, ainda que devemos notar que se trata duma sátira. Será que os romances “sérios” radiografavam a presença não caucasiana?
Em 1847, a palavra tapioca já era conhecida dos britânicos, através do Tapioca Coffee House e também que Bonaparte era chamado de Boney. Por isso que folhetim é legal!
Vanity Fair é um calhamaço; tenho a versão em papel, mas o diminuto da fonte sempre me espantava. O advento do ebook, que permite aumentar a letra propiciou a agradável leitura desse clássico, que embora não tão coeso no sentido da forma romance, mantém o interesse por quase toda a leitura. Funciona ainda no século XXI, acreditem. 

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