sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

PAPIRO VIRTUAL 68


Roberto Rillo Bíscaro

Não canso de declarar amor eterno aos Smiths, os Beatles do indie rock. Adolescendo nos anos 80, o grupo de Manchester é pra mim o que o grupo de Liverpool foi pros jovens dos 1960’s. 


Não sosseguei enquanto não li a autobiografia do vocalista/letrista Morrissey. Controverso, bombástico, arrogante, sardônico, narcisista e marinado em autopiedade, esse homem é autor das letras mais pungentes do rock. A autoimportância do poeta começa pela escolha do sobrenome como nome artístico. Nomes de família são reservados pra compositores eruditos. Mozart, Beethoven, Lizst. Morrissey.
Musicalmente ignorado pela grande mídia e sem gravadora, o cantor possui fãs-devotos. Volta e meia alguma de suas provocações ganha manchetes. Ame ou odeie. Moz.
Pra fechar contrato com a tradicional editora Penguin, estipulou que seu livro fosse publicado pela divisão dos clássicos. Marca de seu ego inflado, mas também truque comercial, o estratagema deu certo e Autobiography saiu pela Penguin Classics, gerando controvérsia, por isso, rendendo pautas.
Batizar seu produto com o nome que recebe por seu gênero literário lembra o P.I.L, que nomeou seus lançamentos como Album, CD, Cassette, Video. Sabe Deus se Morrissey se lembrou disso, mas não custa recordar que o Public Image Limited era chefiado por John Lydon, que com os Sex Pistols influenciou Morrissey fundamentalmente.


Polêmica e jogada comercial passadas - o livro foi lançado em outubro - e a Penguin Classics amargará a piada de ter lançado um texto longe de aspirar ao estatuto de clássico em sua incensada sub-divisão, merecedora, agora, de menos incenso.


Autobiography apresenta o familiar estilo bombástico e palavroso de Morrissey; linguagem rebuscada, cheia de ecos, assonâncias, aliterações, trocadilhos. Mais de um punhado de passagens cheiram a pretensão. Quem conhece bem as letras de Moz facilmente reconhecerá alusões e referências.

O problema de Autbiography é que o texto engana o leitor. Ao terminar de lê-lo não conhecemos Morrissey melhor, sequer contatamos outra faceta que não a do sardônico mártir, incapaz de admitir erros, mas apto a fazer os mais cruéis (e malevolamente engraçados) julgamentos sobre desafetos.

Morrissey nunca está ou faz nada errado; o mundo eternamente conspira contra ele, corroborando a autoimagem de gênio vegetariano antimonarquista incompreendido e fadado ao isolamento.

O final dos Smiths vem numa simples frase; eles tiveram uma reunião com seu contador e o grupo acabou. Claro que não foi simples assim! Falou-se muito de que finalmente o crooner admite sua homossexualidade, revelando o nome do primeiro caso amoroso. Verdade, mas nada é contado sobre o fim do relacionamento. Moz tem a decência de não jogar a culpa no ex-namorado, mas o namoro se esvai das páginas mais discretamente do que entrara.

Algumas seções de Autobiography – que impiedosamente é destituída de capítulos ou qualquer tipo de espaço entre partes – são imperdoavelmente monótonas e repetitivas. Será que Moz proibiu edição?

Quando o ex-Smith Mike Joyce deflagra o famoso processo requerendo 25% dos royalties embolsados por Morrissey-Marr, somos submetidos a dezenas de páginas esmiuçando e reclamando sobre cada ervilha comida pelo juiz John Weeks, que passou sentença desfavorável a Morrissey. Provavelmente se sentindo como seu ídolo Oscar Wilde - esse sim destruído por uma corte britânica no final do século XIX – Moz se compraz no papel de injustiçado e eternamente destruído, enquanto nós leitores, chegamos a desejar tal danação, como vingança pela tortura do lenga-lenga choroso e repetitivo.

Querendo ser ácido, o narrador por vezes se trai. Quando um músico abandona sua banda e propaga coisas horríveis sobre o ex-patrão, Morrissey diz que era, claro, tudo verdade. Então, como o leitor pode crer nas tantas outras histórias de conspiração onde todo mundo estava errado, menos Moz?

A porção final é dedicada a exaustivo relato de suas andanças por casas de shows nem tão grandes em cidades nem tão importantes, onde o cantor se sacia em se sentir amado por plateias escandinavas ou mexicanas. No começo até interessa, mas quando se chega pela terceira vez à Suécia, nos perguntamos onde tudo isso vai dar.

E não dá em nada, como toda a obra.

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