Feliz por ter colaborado com esta excelente matéria sobre albinismo e o trabalho do fotógrafo Gustavo Lacerda, no Portal UAI, lá de Minas Gerais.
Parabéns, Valéria, grande trabalho!
Albinos: fotografias premiadas tiram da sombra histórias de superação em meio ao preconceito e à falta de informação
Valéria Mendes - Saúde Plena
“Adotei uma criança albina. Minha filha é uma escolha, não foi um susto. Mas quem gera filhos albinos não pode levar para o lado da culpa. Não dá para colocar na conta dos pais essa condição e fazer menos por essas crianças. Quem produz vida, reivindica direitos. E saúde não é só médico, atendimento e hospital. Saúde é inclusão social, é ter escola, ter um trabalho, ter possibilidade. O albinismo no Brasil precisa de política social de uma maneira geral”.
O depoimento é da professora Nereida Santos, 41 anos, da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Neste ano, ela comemorou a guarda definitiva da filha Ana Cláudia, de 6 anos, desde 2010 com a família. Ela e o marido são pais também de Breno, de 10, filho biológico do casal.
Em 2009, Nereida se inscreveu no Cadastro Nacional de Adoção. No ano seguinte, conheceu a história da filha adotiva. “Ela já estava há um ano e dez meses em um abrigo. Chegamos lá e nos disseram que ela tinha albinismo. Não nos deixaram vê-la e pediram para que pensássemos se realmente queríamos conhecê-la. Passamos o final de semana pesquisando o assunto e começamos a construir possibilidades. ‘A gente quer uma criança doente?’, ‘Isso é um problema para gente?’, ‘Se na gestação do Breno a gente descobrisse uma doença eu abortaria?’ ‘Se cego vive, trabalha e é feliz por que a Ana Cláudia não poderia ser?’”, recorda-se a professora universitária.
Emocionada, a professora da UFRJ fala que é impossível descrever o que aconteceu quando ela e o marido se encontraram com a criança. “Ela abriu os braços e foi para o colo do meu marido. E ali não tinha albinismo, não tinha condição social. Ela era uma criança linda e era a nossa filha que estava ali. A partir daquele momento nunca mais quis deixar a Ana Cláudia”, relata. Nereida lembra que em 2010 foi um ano de muito temporal no Rio de Janeiro a ponto de a UFRJ suspender as aulas por uma semana. “Aproveitei e corri com a documentação. Eu fui para o abrigo todos os dias porque já não conseguia não tê-la mais comigo. Ana Cláudia foi para nossa casa com um vestido, uma fralda suja e uma sandália no pé”, conta.
Breno conheceu a irmã ao longo do processo de documentação. “Não dissemos nada a ele sobre o albinismo e ele nem se importou com isso. Ser albino é ser uma pessoa como outra qualquer”, observa. Foi o filho mais velho que ‘rebatizou’ Ana Cláudia com um segundo nome, Cacau, como é chamada pela família. “Levei minha filha à pediatra, que não sabia conduzir o atendimento, e me encaminhou para um dermatologista e um oftalmologista”, afirma. No Brasil, o desconhecimento sobre esta condição atinge tanto a população quanto os profissionais de saúde.
Trazer para luz quem vive na sombra
“Um dermatologista me perguntou há quanto tempo eu era albino”. O professor universitário e autor do blog ‘Albino Incoerente’, Roberto Biscaro, 47 anos, ilustra o cenário de desinformação sobre a condição genética que afeta uma pessoa a cada 18 mil nascimentos. “Acho que ele confundiu com vitiligo”, supõe em tom bem-humorado. Por aqui, não sabemos sequer quantos eles são, mas estima-se que o número possa variar entre 10 a 12 mil.
O projeto de um fotógrafo mineiro ocupou recentemente as timelines de muitos brasileiros com imagens belíssimas de albinos e trouxe à tona histórias de vida muitas vezes ofuscadas pelo preconceito e desconhecimento. “Eu acho instigante fotografar quem normalmente não está na posição de protagonista, são pessoas mais espontâneas. No caso dos albinos, tem a questão peculiar que é a fotofobia severa que os afeta. Achei que seria interessante trazer para “a luz” quem geralmente está "na sombra" - inclusive socialmente, ‘à margem’”. E é no Dia Mundial da Fotografia, comemorado em 19 de agosto, que os belo-horizontinos terão a oportunidade de conhecer um pouco mais do premiado trabalho de Gustavo Lacerda. O fotógrafo vem à capital para lançar o livro ‘Albinos’ no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna, às 19h30.
Informação contra o preconceito
Dermatologista da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e coordenador do Programa Nacional de Prevenção ao Câncer da Pele (PNPCP), Marcus Maia coleciona histórias peculiares como o nascimento de uma criança albina, filha de um casal de negros. “Quando o pai viu o bebê foi embora com a certeza de que fora traído pela esposa. Voltou 25 anos depois quando descobriu do que se tratava”, conta. Ele se recorda também do caso de uma mulher que descobriu o albinismo aos 17 anos: “Os pais, de pele branca, achavam que tinham uma filha loira que não enxergava bem”. O médico é o responsável pelo programa Pró-Albino, uma iniciativa da SBD, implantado no Hospital da Santa Casa de São Paulo desde 2011 e que atende 120 albinos, incluindo estrangeiros. O projeto chegou este ano a outros estados brasileiros. “A adesão é um desafio”, afirma Maia.
Marcus Maia explica que o albinismo se refere à incapacidade de um indivíduo em produzir melanina, que é o nosso filtro solar natural e que dá cor à pele, pelos, cabelos e olhos. Quem é albino não consegue se defender da exposição ao sol e a consequência imediata é a queimadura solar, principalmente na infância quando o controle é mais difícil. Se não houver prevenção, são pessoas que podem envelhecer precocemente e desenvolverem cânceres de pele agressivos muito cedo.
A grande maioria dos albinos tem também uma visão subnormal, mas alguns conseguem enxergar bem. Dos 120 pacientes do Pró-Albino em São Paulo, por exemplo, três tem boa visão. Mas, segundo o especialista, a grande maioria enxerga menos que 30% da capacidade dos olhos. Mutações em genes específicos são a causa da doença que pode afetar pessoas de todas as raças. É importante dizer, no entanto, que o espectro clínico varia em intensidade, que vai da falta completa de produção de melanina por toda a vida até aqueles que apresentam alguma produção de pigmento com o passar dos anos. Assim, não é possível só com o exame clínico saber que tipo de albinismo o paciente tem, essa resposta só é alcançada com um diagnóstico molecular que é um exame caro e pouco acessível.
“O albinismo é muito frequente na África (a incidência é de um para cada 2 mil nascimentos). Em certas regiões do continente, o nascimento de um albino é considerado sinal de sorte, de colheita boa. Por isso, muitos deles têm seus corpos mutilados para serem vendidos. No Brasil, o carinho que as famílias têm com seus filhos albinos é extraordinário”, conta. Para ele, o grande desafio é fazer com que esses pacientes recebam atenção em saúde antes de chegarem aos especialistas com câncer de pele avançado. “Nos rincões do Brasil temos albinos trabalhando em profissões de grande exposição solar. Temos também casos de pediatras que orientam que o bebê albino tome sol para ajudar na absorção de vitamina D e de pacientes com diagnóstico errado de oftalmologista”, alerta o médico.
Apesar de tudo isso, Maia diz que o contexto vem se alterando com a própria mobilização dos albinos, como é o caso da Associação das Pessoas com Albinismo da Bahia (Apalba). Fundada em 2001, reúne 450 albinos de cem municípios baianos. “Há muito pouco tempo a gente cuidava dos desastres, mas o cenário está mudando e hoje já temos uma população considerável de albinos com a pele boa”, observa o dermatologista.
Marcus Maia explica que a proteção solar é um conjunto de atitudes que envolve evitar horários de sol forte, se manter na sombra ao máximo e usar não apenas o filtro solar, mas a fotoproteção têxtil (roupas com filtro solar), chapéu e óculos escuros. Como os albinos necessitam de proteção solar absoluta, precisam suplementar a vitamina D.
O autor de ‘Albino Incoerente’, Roberto Biscaro, chama a atenção ainda para o fato de que a prevenção se complica à medida que o poder socioeconômico vai diminuindo. “Protetor solar a cada duas horas, roupas adequadas, vitamina D, óculos escuros de qualidade... Você imagina o preço disso?”, pontua o professor universitário.
O cuidado com os olhos também é importantíssimo para se evitar catarata precoce e até a cegueira. Coordenador da área de oftalmologia do Programa Pró-Albino da Santa Casa de São Paulo, Ronaldo Sano explica que, assim como não têm a pigmentação na pele, os albinos também não têm o pigmento nas estruturas do olho. A íris (parte colorida do olho) é que controla a quantidade de luz que vai entrar dentro dele. “No caso dos albinos, passa em grande quantidade e, por isso, eles têm uma fotofobia muito grande”, diz. O tremor intenso dos olhos (ou nistagmo) também atinge a maioria dos albinos. “Para melhorar esse tremor, o paciente precisa ser diagnosticado cedo”, reforça. Ele cita um estudo com lentes de contato filtrantes que têm se mostrado eficazes. “Essas lentes experimentais são escuras, não deixam a luz entrar e diminuem a fotofobia. Assim, a qualidade da visão melhora”, diz.
Os albinos que têm visão abaixo de 30% em ambos os olhos se encaixam na lei de deficiência visual e podem concorrer a vagas reservadas em concursos públicos, por exemplo. Para isso, precisam de um laudo médico que comprove essa deficiência.
O Ministério da Saúde (MS) classifica o albinismo como uma doença rara que está contemplada na Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Instituída em janeiro deste ano, tem o objetivo de reduzir a mortalidade e a incapacidade causadas por essas doenças e contribuir para a melhoria da qualidade de vida. Atualmente, a pessoa com albinismo pode ser atendida nas unidades de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). “Quanto aos insumos como protetor solar, ressaltamos que é competência das Secretarias de Saúde coordenar, organizar e pactuar suas ações e serviços de média e alta complexidade a partir da atenção básica, de acordo com a programação pactuada e integrada da atenção à saúde”, afirmou o Ministério em nota ao Saúde Plena.
‘Vou morrer albina’
“O preconceito existe. A falta de informação gera discriminação no mercado de trabalho, seja pela deficiência visual ou pela aparência. A pessoa mais jovem tem mais dificuldade em lidar com as relações, quer uma resposta de por que aconteceu com ela, mas o amadurecimento ajuda a gente a lidar com as situações. Sempre vai existir alguém para fazer uma piadinha sem graça ou um comentário de uma forma discriminatória. Eu viro a página. É importante se expor para aprender a se defender. O preconceito não vai acabar, o que pode mudar é a forma de lidar com ele, só assim teremos qualidade de vida melhor ”.
Andreza Cavalli, 34 anos, está no seu segundo curso de graduação. Formada em engenharia elétrica, ela agora faz educação física, trabalha com produção cultural e já cantou e dançou profissionalmente. “Uma coisa é certa: vou morrer albina. Uso o albinismo a meu favor. Aceito que tenho um tipo diferente e exploro essa diferença na minha arte”, diz a jovem.
Os pais de Andreza tiveram quatro filhos, só a irmã mais nova não tem albinismo. Com exceção dos três irmãos, na família da jovem não existe nenhum outro caso. “Vasculhei muito e não consegui chegar a nenhum parente albino”, diz. Ela se recorda de dois episódios de queimadura na infância pela falta de informação adequada. “Eu aprendi a usar protetor solar testando na minha pele, não foi dermatologista que me ensinou não”, diz.
Andreza tem acuidade visual baixa e comprou uma telelupa que aumenta em seis vezes o tamanho da letra para ajudá-la na leitura. “Tenho que lidar com isso também”, brinca. Nem por isso, deixa de se virar bem pelas ruas de São Paulo. “Preciso experimentar descer uma escada correndo, por exemplo, para ver do que eu sou capaz. Por mais que eu não enxergue, o corpo tem memória e a gente se adapta”, pontua.
Da infância na escola, ela se recorda que a solução encontrada pelos professores para lidar com sua deficiência visual gerava situações desagradáveis. “Naquela época, não existiam os recursos da ampliação e os professores simplesmente nos colocavam em cima de um tablado para a gente enxergar melhor. Era constrangedor”, afirma. Apesar disso, a dificuldade de enxergar não atrapalhou o desempenho escolar. “Com óculos e lupa dava para ler um livro”, diz.
Inclusão não é matrícula
A mãe de Ana Cláudia, Nereida Santos, é autora de um estudo intitulado “As pessoas com albinismo e o direito à saúde”, de 2011. Na pesquisa, ela descobriu que 100% dos albinos que estão no Instituto Benjamin Constant (IBC), no Rio Janeiro, foram para lá por problema de inclusão na rede de educação municipal do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. “É o tipo de inclusão que matricula, mas não dá suporte; crianças que chegam aos 12 anos não alfabetizadas, que são empurradas para a série seguinte; bullying praticado pelos próprios docentes que não sabem manejar as necessidades do aluno albino”, afirma a professora da UFRJ. O IBC, que existe desde 1854, é referência na educação de pessoas com deficiência visual.
Para ela, a rede de educação é cruel e excludente. “Ela tira futuro, não favorece a socialização e não prepara para o mercado de trabalho”, diz. Nereida Santos afirma que, nas esferas de inserção social, o albinismo é tão visível que se torna invisível do ponto de vista das políticas públicas.
Roberto Biscaro é o único albino na genealogia familiar. Alfabetizado na década de 70, o conceito de inclusão ainda não existia. “Dependia da boa vontade dos professores. E tive sorte: sempre encontrei pessoas bem intencionadas com certa compreensão e abertas ao diálogo”. Para ele, é importante uma conscientização de educadores e funcionários para entender, por exemplo, que uma criança albina não pode fazer aula de educação física em lugar aberto ou que ficar próximo à luz dificulta ainda mais enxergar e que as provas e o material didático precisam ter uma fonte maior. “A equipe gestora tem que saber trabalhar inclusive os aspectos psicológicos, coibir o bullying. Quanto mais familiaridade com o tema, mais entendimento sobre as diferenças e menos preconceito”, acredita. O professor universitário diz ainda que não é raro albino tímido, com autoestima baixa e com dificuldades para estabelecer amizades e relacionamentos afetivos.
Bullying
Gustavo Lacerda conta que o bullying foi citado com unanimidade por todos os 50 albinos que ele fotografou em São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão. “Eles se adaptam como podem e têm uma vida normal, somente a questão do preconceito é que muitas vezes está acima da capacidade de adaptação e se torna algo perverso”, observa.
Apesar de estudar em uma escola particular e de Nereida Santos “fazer um processo de educação permanente com professores e funcionários”, a pequena Ana Cláudia já demonstrou insatisfação com a própria condição. “Eles (os colegas) ainda são pequenos e aprendem sobre albinismo todos os dias. Mudaram o horário da turma da minha filha ir para o pátio por que ela não pode tomar sol. Sabem que ela não enxerga bem por que tem albinismo, mas ao mesmo tempo são cruéis e dizem que ela tem cabelo de boneca e que é velhinha. Então, ela começou a se arranhar para ‘colorir’ a pele de vermelho”, relata.
A professora universitária diz que na rua a pequena Ana Cláudia também chama muita atenção. “Ela vai ter que se aceitar e aprender a usufruir disso também. No último final de semana, senti uma grande virada da parte dela. Ela ouviu de um Senhor ‘Nossa, parece uma boneca. Nossa, como é bonita’ e respondeu: ‘obrigada’. Não dá para ficar brigando com todo mundo na rua”, comenta.
Mobilização
Diretor executivo da Apalba, Joselito Pereira da Luz, 58 anos, afirma que, no Brasil, não existe nenhuma política pública específica voltada para pessoas com albinismo. “Lutamos pela implantação de políticas de inclusão e acessibilidade que assegurem igualdade de direitos e oportunidades”, explica.
Na Bahia, a rede de apoio contempla desde parcerias com o poder público e o setor privado para assegurar às pessoas de baixa renda acesso gratuito ou subsidiado a equipamentos óticos como óculos e lentes; consultas e acompanhamento com dermatologistas e oftalmologistas até a assistência jurídica gratuita para acesso aos direitos negados.
Segundo ele, já existe uma mobilização de cinco estados para a criação da Associação Brasileira de Pessoas com Albinismo. “Entendemos ser de extrema necessidade a unificação das lutas e das reivindicações por um programa nacional de atenção integral a pessoa com albinismo”.
http://sites.uai.com.br/app/noticia/saudeplena/noticias/2014/08/18/noticia_saudeplena,149869/albinos-fotografias-premiadas-tiram-da-sombra-historias-de-superacao.shtml
Parabéns, Valéria, grande trabalho!
Albinos: fotografias premiadas tiram da sombra histórias de superação em meio ao preconceito e à falta de informação
Valéria Mendes - Saúde Plena
“Adotei uma criança albina. Minha filha é uma escolha, não foi um susto. Mas quem gera filhos albinos não pode levar para o lado da culpa. Não dá para colocar na conta dos pais essa condição e fazer menos por essas crianças. Quem produz vida, reivindica direitos. E saúde não é só médico, atendimento e hospital. Saúde é inclusão social, é ter escola, ter um trabalho, ter possibilidade. O albinismo no Brasil precisa de política social de uma maneira geral”.
Helena - Foto do livro 'Albinos', de Gustavo Lacerda
O depoimento é da professora Nereida Santos, 41 anos, da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Neste ano, ela comemorou a guarda definitiva da filha Ana Cláudia, de 6 anos, desde 2010 com a família. Ela e o marido são pais também de Breno, de 10, filho biológico do casal.
Em 2009, Nereida se inscreveu no Cadastro Nacional de Adoção. No ano seguinte, conheceu a história da filha adotiva. “Ela já estava há um ano e dez meses em um abrigo. Chegamos lá e nos disseram que ela tinha albinismo. Não nos deixaram vê-la e pediram para que pensássemos se realmente queríamos conhecê-la. Passamos o final de semana pesquisando o assunto e começamos a construir possibilidades. ‘A gente quer uma criança doente?’, ‘Isso é um problema para gente?’, ‘Se na gestação do Breno a gente descobrisse uma doença eu abortaria?’ ‘Se cego vive, trabalha e é feliz por que a Ana Cláudia não poderia ser?’”, recorda-se a professora universitária.
Emocionada, a professora da UFRJ fala que é impossível descrever o que aconteceu quando ela e o marido se encontraram com a criança. “Ela abriu os braços e foi para o colo do meu marido. E ali não tinha albinismo, não tinha condição social. Ela era uma criança linda e era a nossa filha que estava ali. A partir daquele momento nunca mais quis deixar a Ana Cláudia”, relata. Nereida lembra que em 2010 foi um ano de muito temporal no Rio de Janeiro a ponto de a UFRJ suspender as aulas por uma semana. “Aproveitei e corri com a documentação. Eu fui para o abrigo todos os dias porque já não conseguia não tê-la mais comigo. Ana Cláudia foi para nossa casa com um vestido, uma fralda suja e uma sandália no pé”, conta.
Breno conheceu a irmã ao longo do processo de documentação. “Não dissemos nada a ele sobre o albinismo e ele nem se importou com isso. Ser albino é ser uma pessoa como outra qualquer”, observa. Foi o filho mais velho que ‘rebatizou’ Ana Cláudia com um segundo nome, Cacau, como é chamada pela família. “Levei minha filha à pediatra, que não sabia conduzir o atendimento, e me encaminhou para um dermatologista e um oftalmologista”, afirma. No Brasil, o desconhecimento sobre esta condição atinge tanto a população quanto os profissionais de saúde.
Roberto Biscaro, autor do blog 'Albino Incoerente'
“Um dermatologista me perguntou há quanto tempo eu era albino”. O professor universitário e autor do blog ‘Albino Incoerente’, Roberto Biscaro, 47 anos, ilustra o cenário de desinformação sobre a condição genética que afeta uma pessoa a cada 18 mil nascimentos. “Acho que ele confundiu com vitiligo”, supõe em tom bem-humorado. Por aqui, não sabemos sequer quantos eles são, mas estima-se que o número possa variar entre 10 a 12 mil.
O projeto de um fotógrafo mineiro ocupou recentemente as timelines de muitos brasileiros com imagens belíssimas de albinos e trouxe à tona histórias de vida muitas vezes ofuscadas pelo preconceito e desconhecimento. “Eu acho instigante fotografar quem normalmente não está na posição de protagonista, são pessoas mais espontâneas. No caso dos albinos, tem a questão peculiar que é a fotofobia severa que os afeta. Achei que seria interessante trazer para “a luz” quem geralmente está "na sombra" - inclusive socialmente, ‘à margem’”. E é no Dia Mundial da Fotografia, comemorado em 19 de agosto, que os belo-horizontinos terão a oportunidade de conhecer um pouco mais do premiado trabalho de Gustavo Lacerda. O fotógrafo vem à capital para lançar o livro ‘Albinos’ no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna, às 19h30.
Informação contra o preconceito
Dermatologista da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e coordenador do Programa Nacional de Prevenção ao Câncer da Pele (PNPCP), Marcus Maia coleciona histórias peculiares como o nascimento de uma criança albina, filha de um casal de negros. “Quando o pai viu o bebê foi embora com a certeza de que fora traído pela esposa. Voltou 25 anos depois quando descobriu do que se tratava”, conta. Ele se recorda também do caso de uma mulher que descobriu o albinismo aos 17 anos: “Os pais, de pele branca, achavam que tinham uma filha loira que não enxergava bem”. O médico é o responsável pelo programa Pró-Albino, uma iniciativa da SBD, implantado no Hospital da Santa Casa de São Paulo desde 2011 e que atende 120 albinos, incluindo estrangeiros. O projeto chegou este ano a outros estados brasileiros. “A adesão é um desafio”, afirma Maia.
Marcus Maia explica que o albinismo se refere à incapacidade de um indivíduo em produzir melanina, que é o nosso filtro solar natural e que dá cor à pele, pelos, cabelos e olhos. Quem é albino não consegue se defender da exposição ao sol e a consequência imediata é a queimadura solar, principalmente na infância quando o controle é mais difícil. Se não houver prevenção, são pessoas que podem envelhecer precocemente e desenvolverem cânceres de pele agressivos muito cedo.
A grande maioria dos albinos tem também uma visão subnormal, mas alguns conseguem enxergar bem. Dos 120 pacientes do Pró-Albino em São Paulo, por exemplo, três tem boa visão. Mas, segundo o especialista, a grande maioria enxerga menos que 30% da capacidade dos olhos. Mutações em genes específicos são a causa da doença que pode afetar pessoas de todas as raças. É importante dizer, no entanto, que o espectro clínico varia em intensidade, que vai da falta completa de produção de melanina por toda a vida até aqueles que apresentam alguma produção de pigmento com o passar dos anos. Assim, não é possível só com o exame clínico saber que tipo de albinismo o paciente tem, essa resposta só é alcançada com um diagnóstico molecular que é um exame caro e pouco acessível.
Ítalo e Renan - Foto do livro 'Albinos', de Gustavo Lacerda
Apesar de tudo isso, Maia diz que o contexto vem se alterando com a própria mobilização dos albinos, como é o caso da Associação das Pessoas com Albinismo da Bahia (Apalba). Fundada em 2001, reúne 450 albinos de cem municípios baianos. “Há muito pouco tempo a gente cuidava dos desastres, mas o cenário está mudando e hoje já temos uma população considerável de albinos com a pele boa”, observa o dermatologista.
Tany - Foto do livro 'Albinos', de Gustavo Lacerda
O autor de ‘Albino Incoerente’, Roberto Biscaro, chama a atenção ainda para o fato de que a prevenção se complica à medida que o poder socioeconômico vai diminuindo. “Protetor solar a cada duas horas, roupas adequadas, vitamina D, óculos escuros de qualidade... Você imagina o preço disso?”, pontua o professor universitário.
O cuidado com os olhos também é importantíssimo para se evitar catarata precoce e até a cegueira. Coordenador da área de oftalmologia do Programa Pró-Albino da Santa Casa de São Paulo, Ronaldo Sano explica que, assim como não têm a pigmentação na pele, os albinos também não têm o pigmento nas estruturas do olho. A íris (parte colorida do olho) é que controla a quantidade de luz que vai entrar dentro dele. “No caso dos albinos, passa em grande quantidade e, por isso, eles têm uma fotofobia muito grande”, diz. O tremor intenso dos olhos (ou nistagmo) também atinge a maioria dos albinos. “Para melhorar esse tremor, o paciente precisa ser diagnosticado cedo”, reforça. Ele cita um estudo com lentes de contato filtrantes que têm se mostrado eficazes. “Essas lentes experimentais são escuras, não deixam a luz entrar e diminuem a fotofobia. Assim, a qualidade da visão melhora”, diz.
Os albinos que têm visão abaixo de 30% em ambos os olhos se encaixam na lei de deficiência visual e podem concorrer a vagas reservadas em concursos públicos, por exemplo. Para isso, precisam de um laudo médico que comprove essa deficiência.
O Ministério da Saúde (MS) classifica o albinismo como uma doença rara que está contemplada na Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Instituída em janeiro deste ano, tem o objetivo de reduzir a mortalidade e a incapacidade causadas por essas doenças e contribuir para a melhoria da qualidade de vida. Atualmente, a pessoa com albinismo pode ser atendida nas unidades de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). “Quanto aos insumos como protetor solar, ressaltamos que é competência das Secretarias de Saúde coordenar, organizar e pactuar suas ações e serviços de média e alta complexidade a partir da atenção básica, de acordo com a programação pactuada e integrada da atenção à saúde”, afirmou o Ministério em nota ao Saúde Plena.
‘Vou morrer albina’
“O preconceito existe. A falta de informação gera discriminação no mercado de trabalho, seja pela deficiência visual ou pela aparência. A pessoa mais jovem tem mais dificuldade em lidar com as relações, quer uma resposta de por que aconteceu com ela, mas o amadurecimento ajuda a gente a lidar com as situações. Sempre vai existir alguém para fazer uma piadinha sem graça ou um comentário de uma forma discriminatória. Eu viro a página. É importante se expor para aprender a se defender. O preconceito não vai acabar, o que pode mudar é a forma de lidar com ele, só assim teremos qualidade de vida melhor ”.
"Aceito que tenho um tipo diferente e exploro essa diferença na minha arte" - Andreza Cavalli, 34 anos
Andreza Cavalli, 34 anos, está no seu segundo curso de graduação. Formada em engenharia elétrica, ela agora faz educação física, trabalha com produção cultural e já cantou e dançou profissionalmente. “Uma coisa é certa: vou morrer albina. Uso o albinismo a meu favor. Aceito que tenho um tipo diferente e exploro essa diferença na minha arte”, diz a jovem.
Os pais de Andreza tiveram quatro filhos, só a irmã mais nova não tem albinismo. Com exceção dos três irmãos, na família da jovem não existe nenhum outro caso. “Vasculhei muito e não consegui chegar a nenhum parente albino”, diz. Ela se recorda de dois episódios de queimadura na infância pela falta de informação adequada. “Eu aprendi a usar protetor solar testando na minha pele, não foi dermatologista que me ensinou não”, diz.
Andreza tem acuidade visual baixa e comprou uma telelupa que aumenta em seis vezes o tamanho da letra para ajudá-la na leitura. “Tenho que lidar com isso também”, brinca. Nem por isso, deixa de se virar bem pelas ruas de São Paulo. “Preciso experimentar descer uma escada correndo, por exemplo, para ver do que eu sou capaz. Por mais que eu não enxergue, o corpo tem memória e a gente se adapta”, pontua.
Da infância na escola, ela se recorda que a solução encontrada pelos professores para lidar com sua deficiência visual gerava situações desagradáveis. “Naquela época, não existiam os recursos da ampliação e os professores simplesmente nos colocavam em cima de um tablado para a gente enxergar melhor. Era constrangedor”, afirma. Apesar disso, a dificuldade de enxergar não atrapalhou o desempenho escolar. “Com óculos e lupa dava para ler um livro”, diz.
Livia - Foto do livro 'Albinos', de Gustavo Lacerda
A mãe de Ana Cláudia, Nereida Santos, é autora de um estudo intitulado “As pessoas com albinismo e o direito à saúde”, de 2011. Na pesquisa, ela descobriu que 100% dos albinos que estão no Instituto Benjamin Constant (IBC), no Rio Janeiro, foram para lá por problema de inclusão na rede de educação municipal do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. “É o tipo de inclusão que matricula, mas não dá suporte; crianças que chegam aos 12 anos não alfabetizadas, que são empurradas para a série seguinte; bullying praticado pelos próprios docentes que não sabem manejar as necessidades do aluno albino”, afirma a professora da UFRJ. O IBC, que existe desde 1854, é referência na educação de pessoas com deficiência visual.
Para ela, a rede de educação é cruel e excludente. “Ela tira futuro, não favorece a socialização e não prepara para o mercado de trabalho”, diz. Nereida Santos afirma que, nas esferas de inserção social, o albinismo é tão visível que se torna invisível do ponto de vista das políticas públicas.
Roberto Biscaro é o único albino na genealogia familiar. Alfabetizado na década de 70, o conceito de inclusão ainda não existia. “Dependia da boa vontade dos professores. E tive sorte: sempre encontrei pessoas bem intencionadas com certa compreensão e abertas ao diálogo”. Para ele, é importante uma conscientização de educadores e funcionários para entender, por exemplo, que uma criança albina não pode fazer aula de educação física em lugar aberto ou que ficar próximo à luz dificulta ainda mais enxergar e que as provas e o material didático precisam ter uma fonte maior. “A equipe gestora tem que saber trabalhar inclusive os aspectos psicológicos, coibir o bullying. Quanto mais familiaridade com o tema, mais entendimento sobre as diferenças e menos preconceito”, acredita. O professor universitário diz ainda que não é raro albino tímido, com autoestima baixa e com dificuldades para estabelecer amizades e relacionamentos afetivos.
Bullying
Gustavo Lacerda conta que o bullying foi citado com unanimidade por todos os 50 albinos que ele fotografou em São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão. “Eles se adaptam como podem e têm uma vida normal, somente a questão do preconceito é que muitas vezes está acima da capacidade de adaptação e se torna algo perverso”, observa.
Thyfany - Foto do livro 'Albinos', de Gustavo Lacerda
Apesar de estudar em uma escola particular e de Nereida Santos “fazer um processo de educação permanente com professores e funcionários”, a pequena Ana Cláudia já demonstrou insatisfação com a própria condição. “Eles (os colegas) ainda são pequenos e aprendem sobre albinismo todos os dias. Mudaram o horário da turma da minha filha ir para o pátio por que ela não pode tomar sol. Sabem que ela não enxerga bem por que tem albinismo, mas ao mesmo tempo são cruéis e dizem que ela tem cabelo de boneca e que é velhinha. Então, ela começou a se arranhar para ‘colorir’ a pele de vermelho”, relata.
A professora universitária diz que na rua a pequena Ana Cláudia também chama muita atenção. “Ela vai ter que se aceitar e aprender a usufruir disso também. No último final de semana, senti uma grande virada da parte dela. Ela ouviu de um Senhor ‘Nossa, parece uma boneca. Nossa, como é bonita’ e respondeu: ‘obrigada’. Não dá para ficar brigando com todo mundo na rua”, comenta.
Mobilização
Diretor executivo da Apalba, Joselito Pereira da Luz, 58 anos, afirma que, no Brasil, não existe nenhuma política pública específica voltada para pessoas com albinismo. “Lutamos pela implantação de políticas de inclusão e acessibilidade que assegurem igualdade de direitos e oportunidades”, explica.
Na Bahia, a rede de apoio contempla desde parcerias com o poder público e o setor privado para assegurar às pessoas de baixa renda acesso gratuito ou subsidiado a equipamentos óticos como óculos e lentes; consultas e acompanhamento com dermatologistas e oftalmologistas até a assistência jurídica gratuita para acesso aos direitos negados.
Segundo ele, já existe uma mobilização de cinco estados para a criação da Associação Brasileira de Pessoas com Albinismo. “Entendemos ser de extrema necessidade a unificação das lutas e das reivindicações por um programa nacional de atenção integral a pessoa com albinismo”.
http://sites.uai.com.br/app/noticia/saudeplena/noticias/2014/08/18/noticia_saudeplena,149869/albinos-fotografias-premiadas-tiram-da-sombra-historias-de-superacao.shtml
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