Quando
criança e durante a maior parte da adolescência, ouvi radio AM, nos anos 70/80.
Naquela época, FM tocava música pra classe média e AM era mais povão. Pelo
menos, na região noroeste do estado de São Paulo era assim. Lilian, Kátia,
Julia Graziela, Marcio Greyck, Ovelha, Adriano, Harmony Cats, eu poderia citar
uma página. Esse pessoal também tocava nos programas de auditório do Sílvio
Santos, Barros de Alencar, Bolinha, Chacrinha (pro qual Gal & Cia não
recusavam convite, quando o Velho Guerreira estava na Globo).
Gosto
musical é uma arena de combate por hegemonia e demarcação de território pra
certas frações de classe. O que o sujeito ouve e o que gosta são marcas de
pertencimento a determinado grupo. Por isso que Fernando Mendes é brega pra
certos setores, mas quando Caetano Veloso regrava Você Não me Ensinou a Te
Esquecer autoriza esses rincões a gostarem da canção, “refinada” pelo baiano.
Nunca tive problema em admitir que amo certas
canções “brega” e jamais necessitei da chancela de medalhão da MPB (que me
importa o que Adriana Calcanhoto indica ou diz?), mas sempre me interessei pelo
assunto da “música brega”, especialmente dos 70’s. Por isso li com interesse a
dissertação Eu Não Sou Lixo: música “brega”,
indústria fonográfica e crítica musical no Brasil nos anos 1970, de Sílvia
Oliveira Cardoso. O texto pode ser acessado aqui e baixado em pdf.
Inspirada
pelo já clássico Eu Não Sou Cachorro, Não, de Paulo César Araújo, Sílvia se
embasa em referenciais teóricos importantes, como a noção de gosto, do
sociólogo Pierre Bourdieu, segundo a qual o gosto é forma de marcação de um
lócus social e o materialismo histórico de Raymond Williams, que vê a cultura
entremeada em todas as instâncias e não apenas como reflexo mecânico na
desgastada fórmula da base e superestrutura.
O termo
brega teve seu significado pejorativo meio esvaziado pelo uso da palavra pelos
próprios músicos, pelo menos das gerações mais jovens, pra designar um bem
sucedido estilo, o tecnobrega, que floresceu no norte e nordeste e gerou
artistas nacionalmente conhecidos como Gabi Amarantos.
A autora
defende que a substituição da emotividade dos boleros e sambas-canções dos anos
40 e 50 pela contenção classe-média da Bossa Nova relegou o excesso no canto e
nas letras às classes populares.
Nos anos 60/70, a necessidade de artistas da
Jovem Guarda de reorientarem suas carreiras com o declínio do movimento; a
reestruturação musical de Roberto Carlos, que passou de roqueiro veloz a moço
romântico e nos anos 70, cada vez mais apimentado; o surgimento de artistas
oriundos das classes populares, que se utilizavam de ritmos valorizados por
elas, como o samba, bolero, balada, somando-se ao desenvolvimento da indústria
cultural de massa, o estouro de audiência de programas de auditório na TV, da
popularização do LP como suporte mais difundido do que o compacto, constituíram
terreno mais do que fértil pro sucesso de vendas de artistas bregas como Nelson
Ned e Odair José.
A autora
discorre sobre a liberdade concedida a artistas da chamada MPB pelas
gravadoras, que não se preocupava tanto com suas vendagens – até porque músicos
como Milton Nascimento vendem seus álbuns anos depois de lançados,
diferentemente de artistas fabricados, cujas vendagens têm prazo bem menor de
vencimento – e investia vultosas somas nas capas e produção dos LPs, ao passo
que a galera brega não tinha como experimentar ou ter produtos de boa qualidade
gráfica.
Os 3 capítulos de Eu Não Sou Lixo: música “brega”, indústria fonográfica e crítica musical
no Brasil nos anos 1970 demonstram como os gêneros musicais mais
identificados com as classes populares foram desvalorizados ou encarados de
forma paternalista por setores da imprensa. Os críticos musicais sistematicamente
desvalorizavam a produção de artistas como Waldick Soriano, que vendiam alto,
chegavam ao topo das paradas, mas não tinham respaldo na imprensa “séria” por
serem “bregas”.
Embora a gente espere mais críticas extraídas do
jornal coberto pelo longo período do recorte adotado por Cardoso, seu trabalho deve
ser lido por interessados em música “brega” ou não.
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