Roberto Rillo Bíscaro
Em sua autobiografia, Morrissey reclamou que hoje é
fácil desconsiderar o impacto artístico-comportamental de David Bowie.
Androginia e declarações bombásticas acerca de homo/bissexualidade são
lugares-comuns em partes do hemisfério norte, mas quando o Camaleão começou a
quebrar esses tabus no início dos anos 70, sua rebeldia escandalizou a
Inglaterra. Imagine que pra capa de The Man Who Sold the World, seu álbum de
1970, o artista pousou com cabelão comprido – até aí nada demais no universo
rock – e vestido, deitado num divã, num cenário super-Pré-Rafaelita. No mundo (aparentemente) macho do Deep Purple e Led Zeppelin isso era um ultraje.
Mas ainda não era quase nada comparado ao que Bowie
aprontaria pro álbum seguinte, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the
Spiders from Mars (1972). De cabelos curtos e vermelhos e com visual inédito no
planeta Terra, o multimídia inventou uma personagem que o catapultaria ao
estrelato e seria o primeiro duma série de trabalhos e personas que o
constituiriam num dos artistas mais influentes do século XX.
O excitante documentário David Bowie & the Story of
Ziggy Stardust (2012) radiografa a concepção, execução e os desdobramentos
desse feito sociocultural. Muitos reclamam que hoje os artistas são como
produtos já em seu estágio final quando chegam ao consumidor, sem tempo pra
testar ideias e maturar. Bowie levou 10 anos absorvendo elementos - que passam
pelo rock dos anos 50, teatro de vanguarda, mímica, ficção-científica, cenário underground gay e tanto mais –
utilizados e ressignificados sob forma de tentativa e erro até explodir como um
dos vulcões mais criativos e incendiários dos anos 1970.
O programa da BBC entrevistou músicos da banda Spiders
from Mars, inventada pro projeto, e artistas como Elton John, Marc Almond e um
dos Kemp do Spandau Ballet pra atestarem o impacto do álbum. Incrívell como o
arroz de documentário da BBC Iggy Pop não apareça, afinal, ele influiu muito na
guinada de Bowie.
Aprendemos sobre o penteado, as roupas, as canções,
suas aparições na TV e também sobre o lado menos bonito da histeria Ziggy
Stardust, que iniciou o processo de esquizofrenia cocainada do Camaleão. Pra
quem se atém à idealização romantizada de que basta ter talento, David Bowie
& the Story of Ziggy Stardust traz uma injeção de realidade ao explicitar o
papel preponderante que um empresário endinheirado teve na ascensão de Bowie,
especialmente quanto à conquista do cobiçado e difícil mercado norte-americano.
Inegável a genialidade de David Bowie, mas sem dindim talvez ele tivesse
permanecido subterrâneo ou não poderia ter dado vazão a tantas ideias.
Tomara que a BBC dedique documentários a outros álbuns
do Camaleão, afinal, ele passou os anos 70 preparando o terreno pro punk, pra
maioria dos artistas oitentistas, pro Britpop e até pra Lady Gaga, não se
enganem. A gente abre um Nordic Noir e lá está uma personagem ouvindo
Ziggy Stardust o tempo todo (Paganinikontraktet; resenha aqui),
enfim, Bowie é referência e sempre tendência.
Disponível no You Tube com
legendas em espanhol. Recomendo. David Bowie importa.
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