Deseducar para incluir
Nem todo o estranhamento é preconceito, mas a atitude defensiva de pais e mães de crianças com deficiência pode contribuir ainda mais para aumentar um e outro.
Lúcio Carvalho
O terreno é argiloso e movediço e sei que para entrar nele todo o cuidado é pouco, mas é um risco necessário. Além de ser o único modo de chegar ao outro lado da questão. Isso se houver um outro lado da questão. É o que vou tentar descobrir aqui.
De imediato eu poderia lançar mão em meia dúzia de teorias sobre o preconceito ou da bem difundida (mas será que executada na mesma medida?) “educação para a diversidade”, mas vou tentar outro caminho. Vou usar como exemplo duas situações que aconteceram comigo mesmo e meus filhos, em diferentes momentos da vida.
Nunca tivemos, em casa, nenhum tipo de atitude pedagógica sobre a deficiência com que meu filho mais novo nasceu (ele nasceu com a síndrome de Down). Nem com sua irmã mais velha, nem com parentes ou amigos. E não fizemos isso porque nunca sentimos necessidade. Nossa opção foi desde o seu primeiro dia de vida tratar a ele e sobre ele naturalmente. Nem sabíamos que tínhamos outra opção, inclusive.
Hoje sei que poderia ter colocado uma placa na porta de casa com instruções de relacionamento ou ter ido às ruas defendendo-o de qualquer olhar curioso, mas resolvemos não transformar nossa vida num campo de batalha. Aparentemente temos, pelo menos até agora, sido bem sucedidos. Não que isso evite o preconceito, porque normalmente este é um sentimento íntimo e velado, interditado pelas convenções sociais. Bom, também temos sido bem sucedidos em não nos tornarmos caçadores de preconceitos, tarefa das mais ingratas que um ser humano pode ter ou conclamar a si mesmo.
A primeira das situações aconteceu há alguns anos atrás. Estávamos num parque, sob as ávores, numa calorosa tarde de verão e de repente vimos aproximar-se uma família cuja uma de suas integrantes aparentava cerca de quarenta ou cinquenta anos. Uma senhora que também tinha a síndrome de Down, aqueles olhinhos pequenos não deixavam dúvidas. Eles sentaram-se relativamente próximos a nós. Mas ela, a senhora, praticamente não falava com nenhum dos demais. Ao contrário, saiu a caminhar por ali, para conhecer ou reconhecer o lugar.
As crianças que estavam por perto, meus filhos inclusive, logo perceberam sua presença e lembro que uma delas resolveu implicar com a senhora por alguma razão. Minha filha mais velha, que nessa época mal tinha noção de que o irmão também tinha a síndrome de Down (ela tinha no máximo seis anos de idade e ele 4), resolveu interceder. Lembro exatamente como se fosse hoje do que disse: “Deixa ela. Ela é assim.”
É claro que sua intervenção não foi resultado do empreendimento de uma campanha doméstica contra o preconceito que tenhamos feito. Ela, naturalmente, entendeu o que parece ser incompreensível para a maioria das pessoas, que é o fato de que as pessoas têm o direito de ser exatamente como são. Sem mais nem menos. Sem pôr nem tirar.
Essa simplicidade de pensamento, tão comum nas crianças, eu fico pensando.. onde é que ela vai parar mais tarde? Se toda a sofisticação do pensamento culto consiste em atribuir um valor distintivo entre as pessoas, talvez seja por isso que tão facilmente abrimos mão de reconhecer a diferença no outro e interpusemos uma série de requisitos sociais, sem os quais parece não ser possível um convívio minimamente natural e civilizado.
Naquele momento, de forma absolutamente desimpedida, minha filha (sem ter a mínima ideia disso) mostrou-me que a aceitação e o reconhecimento não requerem esforço algum. E que, quando isso acontece de forma programada, pode ser que está a exercitar-se outras coisas que não a “inclusão”, talvez no máximo a tolerância e a compreensão. O que não é pouco nem pior, mas não é o mesmo. Tratar conceitos assim como se fossem o mesmo é uma confusão que acaba sempre por colocar um dos sujeitos no papel de alvo e o outro no de agente da “civilização”. Do outro lado desse comportamento “pedagógico”, nem todos parecem perceber o abismo que se cria entre as pessoas, mesmo quando os objetivos são efetivamente nobres e os gestos edulcorados.
Meu outro exemplo envolve meu filho e o seu próprio contato com a diferença.
Recentemente, no supermercado do bairro que frequentamos, uma funcionária anã passou a trabalhar ali. Ele, que só conhecia anões através de histórias e filmes infantis, ficou pasmo quando viu a nova funcionária. Também de forma natural, resolveu aproximar-se, mas ela, de sua parte, não gostou e logo foi dando um jeito de sair de perto. Ela não seria mesmo obrigada a ver-se no papel de atração infantil. Não a condeno por isso. Longe de mim. Se ela conversasse um pouquinho, talvez pudesse ajudar a desfazer a incompreensão, mas ninguém deve estar obrigado a isso. É seu direito e deve ser respeitado. Muitos pais e mães de crianças com deficiência agem da mesma forma, não que eu concorde com isso.
No mesmo instante, pensei em como explicar a ele a situação, dada sua dificuldade cognitiva. Não consegui. Nada do que pensava me ocorria ser uma explicação acessível e aceitável. Então a imagem da minha filha voltou a minha mente e simplesmente expliquei a ele que ela era assim. Ponto final. Não há nada que se possa fazer com a diferença alheia a não ser aceitá-la. Assim mesmo: tacitamente.
Se funcionou? Em grande parte sim, porque das outras vezes em que nos encontramos no supermercado ele não tentou ir brincar com ela ou ficar apontando com o dedo. Naturalizou sua presença. O convívio fez de uma maneira direta aquilo que o meu discurso certamente teria falhado em obter.
É claro que meus exemplos não são universais e nem poderiam ser. Há uma variedade infinita de emoções possíveis para mães, pais e crianças com deficiência que seria de uma arrogância impensável forjar um modo de agir, porque não existe um modo de agir certo que seja aplicável a toda e qualquer pessoa, a não ser numa mentalidade autoritária. E é uma incoerência tamanha reivindicar tratamento igualitário mediante a apresentação de um manual de instruções.
Evidentemente é necessário aprender a conviver com a diferença e com a deficiência, mas isso deve ser feito preferencialmente na prática, sob pena de que discursos pedagógicos e campanhas não surtam efeito algum, a não ser o de aumentar ainda mais o estranhamento ou emplacar-se a noção de que são pessoas de vidro, como tabus ambulantes, a quem se pode perguntar isso mas não aquilo. A quem é permitido conviver, mas sob determinadas condições.
Se do outro lado da questão do preconceito e da “educação para a diversidade” há um novo tipo de preconceito, talvez então seja o caso de deixar um pouco mais às crianças e pessoas com deficiência a árdua “tarefa” da convivência, com seus ônus e bônus. Pode ser surpreendente que novas dinâmicas sociais criem-se ao natural, sem a necessária presença de uma mediação ideológica de quem quer que seja.
* Coordenador-Geral da Inclusive – Inclusão e Cidadania e autor de Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com).
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